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nº 10 | Ano 4 | Dezembro de 2015

 

Desejo e luto: uma referência a Hamlet1

Por Maria Luiza Rangel(EBP/AMP)

 

Neste texto focalizamos a mudança de estatuto do desejo de Freud para Lacan que leva em conta a atualização feita pela cultura sobre os ensinamentos freudianos, formalizados em inícios do século XX. Consideramos, aí os enunciados nos Seminários 6 e 10.


Tomamos como referência o personagem Hamlet da obra de Shakespeare, chamada por Lacan de a “tragédia do desejo”.  No Seminário 10 ele resgata uma pergunta que atravessa os tempos: Por que Hamlet não age? Sendo ele um personagem que não recua de muita coisa e não se acovarda, por que não vai ao ato?


Neste Seminário e sobre esta indagação diz que ele não pratica justamente o ato que lhe cabe praticar por lhe faltar o desejo. Seria, então o não-desejo de Hamlet o inibidor do   ato decorre da ausência do luto. Que processos libidinais são esses tão poderosos que comandam o sujeito e o deixam paralisado?


Freud destaca como relevante o que descobre na clínica, o desejo como força libidinal. Em Lacan, surge como estritamente relacionado à cura, capaz de fazer retroceder as exigências destrutivas do gozo. Relaciona-se ao agente operador no tratamento que é o desejo do analista e ao objeto a como causa de desejo.


Freud enfatiza a “força indestrutível do desejo” sendo notável sua descoberta relativa aos sonhos onde demonstra fartamente que esta, como as demais formações do inconsciente, são movidas pelo desejo. Esta ênfase é colocada com muito vigor, por exemplo, no sonho da bela açougueira e no sonho do pai morto.


Para Freud, em Hamlet o desejo aparece sob a forma de desejos incestuosos e hostis2 tal como em Édipo. Mas  na leitura que Lacan3 faz de Hamlet ele já pré-anuncia o mais-além do Édipo, e que aparece formalizado no Seminário 17. Por isso, Hamlet é considerado o Édipo da modernidade, pois atualiza a tragédia de Sófocles. Marca a emergência, portanto, a aurora da ética moderna sobre a nova relação do sujeito e seu desejo,4 diz Lacan.

 

 Miller 5ao comentar o Seminário 6, diz que Lacan põe Hamlet em contraponto ao Édipo e mostra que a natureza do desejo apontado por Freud em relação a Hamlet refere-se ao infantil.

 

Umas das primeiras elaborações de Lacan sobre o desejo consiste em relacioná-lo à necessidade e à demanda6, surgindo, como resultado desse binário, um resto daquilo que se opera entre a demanda e a necessidade. Trata-se portando de um quantum pulsional que, advindo da demanda, não é totalmente capturado pela necessidade. Esse resto irredutível da libido é capturado como objeto, que aparece sob a luz do desejo. É o anúncio do objeto a em sua função de causa de desejo, que prefigura o objeto perdido.
 Uma relação entre a pulsão e o significante é dada pela primeira vez que  é explicitada no grafo do desejo, onde a pulsão se inscreve como o significante da demanda.


O desejo tomará então sua posição de objeto a, situado em relação à angústia7.


É como objeto a, resto irredutível na operação total do advento do sujeito, sobra da operação subjetiva8, que se lida no desejo e na angústia. Lidamos com isso, na angústia num momento logicamente anterior ao em que lidamos com ele no desejo.  Daí sua condição de objeto causa de desejo.


O objeto a é o que permite ao sujeito lidar com todos os objetos de desejo. É quando a inexistência do desejo faz, então, questão para o sujeito. Sabe-se que na psicose, o desejo está fora estrutura devido a inexistência do objeto a. Na neurose, tal como em Hamlet ele aparece em suspenso.


Na análise feita no seminário 10, em Hamlet, a relação entre desejo e luto é um dos pontos mais destacados da tragédia, na medida em que o objeto implicado na perda no real não passa pela operação significante.


No seminário 6, Lacan destaca os ciúmes relativos ao luto9 presentes em Laertes, cujo luto em relação a morte de Ofélia é invejado por Hamlet: “ Não suportei sua bravura! A maneira de alardear sua dor! ”  Diante da ostentação do luto pelo rival ele se defronta com o insuportável: a perda do objeto no real.


Freud observa que o sujeito do luto10 lida com uma tarefa que consistiria em consumar pela segunda vez a perda do objeto amado. Ele insiste, justificadamente, no aspecto detalhado, minucioso da rememoração de tudo o que foi vivido da ligação com o objeto amado. Já para Lacan, o trabalho de luto é feito para, na verdade, restabelecer a ligação com o verdadeiro objeto da relação, o objeto a, que tornará possível a invenção de um objeto substituto.
A morte é uma perda, uma perda verdadeira, intolerável para o ser humano, provoca um furo no real, diz Lacan.  A relação que está em jogo é inversa a da Verwerfung “ o que é recachado no simbólico reaparece no real” e, na morte se trata de um furo no real que reaparece no imaginário e necessita de simbolização.11


Esse buraco resulta do fato de revelar o lugar de onde se projeta precisamente o significante faltante. Aqui se trata, diz Lacan, do significante essencial na estrutura do Outro, aquele cuja ausência torna o Outro impotente para cada um dar a sua resposta. Esse significante, uma vez ausente, não pode articular-se no nível do Outro.   Por isso, no luto tal como na psicose, no seu lugar vem a pulular todas as imagens que concernem aos fenômenos do luto. Por isso, o luto é aparentado com a psicose.


 O caminho do luto que é uma elaboração significante do objeto de perda no real não se abriu para Hamlet. Num cenário de ausência dos ritos religiosos, Hamlet desenvolve uma loucura particular que é a figura do ghost, uma manifestação imaginária.


A não elaboração do luto provoca a inibição do desejo.


Não há luto na mãe Gertrudes, o que faz desvanecer-se nele, dissipar-se qualquer impulso possível de desejo. Essa ausência representa uma evasão do semblante materno, uma Gertrudes genital, tal como aparece nas lembranças de Hamlet, que coloca uma questão sobre o DM.


Por outro lado, o desejo falta porque o ideal desmoronou. Lacan destaca o caráter da relação de Hamlet com o pai, um pai idolatrado que esconde o amor cortês que ele dirigia à mãe.
O desejo falta porque o Ideal desmoronou, diz Lacan.  Quando se contradiz o Ideal, quando ele desmorona é o que se constata: o poder do desejo desaparece em Hamlet. Esse poder só seria restaurado nele a partir de um luto de verdade. 12E é por isso que ele entra em competição com o luto de  Laertes por sua irmã, que era o abjeto amado de Hamlet e de quem ele fora subitamente separado pela carência de desejo.


 E isso se deu em função da perda do ideal do eu constituído pelo pai morto, antes colocado como pai imaginário, idealizado.  Com esta derrocada, o desejo inexiste.13


1 Este trabalho é um efeito da participação em um cartel da EBP-Bahia composto por Bernardino Horne, Ethel Poll, Lucy de castro, Marcelo Magnelli sobre a temática Luto, mania e melancolia.  Novembro/2015

2 FREUD, S (1980). A interpretação dos sonhos. In: Obras completas da Edição Standard Brasileira, vol. IV. Rio de janeiro: Imago. Texto de 1900.

3LACAN, J (2005). O Seminário, Livro 10. A angústia. (p. 361/66). Rio de janeiro: Jorge Zahar (Seminário de 1962/1963

4 Idem. (p. 362)

5 MILLER-A J.- Uma reflexão sobre o Édipo e seu mais-além.  In: A Diretoria na rede. EBP. Dezembro 2013

6LACAN, S (1965). A significação do falo In: Escritos. Rio de janeiro, Zahar, (p. 167)

7 LACAN, J. LACAN, J (2005). O Seminário, Livro 10. A angústia. Idem (p.362)

8 LACAN, J. Idem. Ibid. (p.365)

9 LACAN, J. LACAN, J (2015). El Seminario . Libro 6. El desejo y su interpretacion (p.500). Buenos Aires: Paidós. Texto de 1958-1959

10 FREUD. S. (1980) Luto e melancolia In: Obras completas da Edição Standard Brasileira, vol. XVI. Imago, Rio de janeiro. Imago. Texto de 1917

11 Lacan, J. Idem. ibid.  (p.110)

12 Cf. LACAN. J.   Idem. ibid. (p.115)

13 LACAN, J.  op. cit. (p.364)