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nº 8 | Ano 2 | Abril de 2013

 

O CIEN na Bahia

Mônica Hage Pereira

 

Com o tema “Furando etiquetas”, a III Manhã de Trabalhos do CIEN, em Salvador, promoveu um encontro com consequências. O CIEN aposta na contingência do encontro.  E foi desse encontro em Salvador que algo novo pôde advir – o desejo de criação de um laboratório do CIEN na Bahia.

 

Vivenciando o cotidiano de uma Instituição Pública de Saúde Mental, o atendimento a crianças e adolescentes nos coloca frente à questão: o que cada um faz com o que não se controla? Recebemos, diariamente, crianças e adolescentes “etiquetados” sob o rótulo de “hiperativos”, “fóbicos”, “deprimidos”, “autistas”, portadores de “retardo mental”, e tantos outros. Essas são as marcas que lhe são atribuídas como representante de uma categoria, que deverão agora pertencer. As políticas universalizantes, com avaliações baseadas em etiquetas, vem promovendo uma infância catalogada.

 

Dentro da Instituição Pública, seja ela da área de Saúde, Educação ou Justiça, compartilhamos com profissionais impelidos a responder ao imperativo do controle social. O saber de cada um encontra-se obturado.

 

Demandados pelas escolas, pelos conselhos tutelares, pelas famílias, ou por outros profissionais médicos, fonoaudiólogos, terapeutas ocupacionais, etc, os profissionais “psis” , por sua vez, costumam ser solicitados a responder àquilo que nenhuma outra instância conseguiu “solucionar” – as “demandas impossíveis”. É preciso, nesse momento, não sucumbir à impotência. Mas, “na impotência, colocar um ponto de possibilidade”, como nos disse Rosário no trabalho apresentado na III Manhã de Trabalhos do CIEN, em Salvador.

 

Pensando nesse ponto de possibilidade, trago uma vinheta clínica de um caso atendido pela equipe do ambulatório infanto/juvenil do Hospital Juliano Moreira. M. tem 14 anos e chega para o atendimento comigo, encaminhado pela colega psiquiatra, praticamente sem sobrancelhas, pois ele vem arrancando os pêlos frequentemente. Muito inquieto, mal consegue permanecer sentado enquanto conversa comigo. Sempre rindo, sugerindo certo desdém, me fala que o irmão, usuário de drogas, o perturba muito: “o problemático é ele”, diz M. Sente-se injustiçado em casa, “tudo de errado, dizem que sou o culpado...”. O pai, “já muito cansado” do comportamento do filho me diz que “não aguenta mais.” Não sabe o que fazer com M. pois ele não o obedece. Recebe queixas diárias da escola, que também não sabe como agir com esse aluno, que “não se concentra em nada”, “não assisti as aulas”, “bagunça muito” e “nada aprende”. Frequentemente M. sai de casa, sem autorização dos pais, e fica “aprontando na rua, provocando brigas com os vizinhos.” Em uma sessão, M. me pergunta se tenho facebook. Indago-lhe porque e ele diz que gostaria de me adicionar como amiga, para que eu ficasse lhe dizendo, no decorrer da semana: “M. não faça isso, M. não faça aquilo...” “Você poderia me dizer, pelo facebook, o que devo, ou não, fazer”. Bastante surpresa com essa “invenção”, não concordei, por não me senti confortável ocupando o lugar de “lei” que este adolescente me demandava. Pouco tempo depois, o pai, que também diversas vezes me demandou esse lugar, me diz, num momento de desespero, que irá procurar o Conselho Tutelar pois precisa de “algo que o faça parar” e que agora a situação piorou pois M. não quer vir mais para o tratamento. Vale ressaltar que antes disso acontecer, ele havia me solicitado que internasse o filho. Busco, com essa vinheta, trazer um pouco dos impasses que nos deparamos num ambulatório de um hospital psiquiátrico, e de como muitas vezes é preciso inventar, criar um ponto de possibilidade diante da impotência. O que teria ocorrido se aceitasse a proposta virtual de M.? São pontos para reflexão e, porque não, para entrarem  em uma roda de conversação?

 

Em entrevista concedida recentemente, por ocasião do XIX Encontro Brasileiro do Campo Freudiano, Judith Miller coloca que o CIEN é uma das maneiras de dizer, de inventar, uma modalidade que valoriza o trabalho social e que pode permitir a cada um dar conta da impotência.

 

A proposta do CIEN é a de promover a conversação social, com profissionais de diversas disciplinas. A ideia é que os impasses possam ser transformados em questões, tornando-se objetivos de pesquisas interdisciplinares do laboratório.

 

É preciso estar advertido de que a proposta do CIEN é a de abrir outro espaço na língua de cada disciplina. Os profissionais, das diversas disciplinas, que participam das experiências do CIEN não sustentam uma clínica psicanalítica mas, segundo Udênio, se orientam por aquilo que os praticantes da psicanálise podem transmitir-lhes do que extraem de sua formação, de sua análise pessoal – daí a denominação de “analisantes esclarecidos” – e do que sua prática analítica lhes ensinou.

 

 Sobre isso, Miller tece um comentário: “os analistas do Campo Freudiano nos laboratórios do CIEN, realizam um trabalho – não clínico – mas tendo como tarefa arranjar no mundo contemporâneo – denunciando os entraves que fazem obstáculo e os falsos semblantes que o querem calar – um espaço onde o inconsciente se torne audível. Para isso, o inconsciente deve ter um destinatário...” (comentário de J. Miller durante a reunião dos laboratórios no outono de 2006; publicado no Anuário do CIEN- Brasil  2011-2012).

 

As conversações interdisciplinares do CIEN permitem, segundo Judith Miller, “abrir espaços onde a subjetividade de cada um possa encontrar um lugar.” Ao darmos a oportunidade de se tomar a palavra, atentos ao que escapa e não se encaixa nas normas, teremos a chance de “recolhermos efeitos de sujeito”.

Diante da escolha entre fazer calar ou fazer falar, devemos apostar que ali, no ser criança, há um saber próprio. Saber, como nos diz Miller, “autêntico”. É preciso, afirma Miller, “restituir o lugar do saber da criança, o que as crianças sabem, E eles sabem, sabem sempre mais do que imaginam os adultos, estes já cretinizados por sua educação consumada.”

 

Desta forma, o CIEN se constitui como o lugar que irá favorecer o estabelecimento de condições para se escutar o que uma criança, ou um jovem, tenham a dizer. Num mundo em que, cada vez mais, o que um sujeito enuncia encontra-se desacreditado; onde não há espaço para a singularidade, é responsabilidade do CIEN, através dos seus laboratórios, promover este espaço.

 

Com a expressão paradoxal “me incluo fora dessa”, proferida por um adolescente que participava de um dos laboratórios, Beatriz Udênio nos traz, em entrevista concedida por ocasião do XIX Encontro Brasileiro do Campo Freudiano, um exemplo precioso de como cada um poderá incluir sua singularidade no mundo. Ou seja, estar no mundo resguardando a sua singularidade.

 

Para concluir, trago uma citação de Miller:

 

É preciso avançar no campo social, no campo institucional e nos preparar para uma mutação na forma da psicanálise. Sua verdade eterna, seu real trans-histórico não serão modificados por esta
mutação. Ao contrário, eles serão salvos, se nós apreendemos a lógica dos tempos modernos..


Jacques Alain Miller. Le neveu de Lacan, p. 124