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nº 8 | Ano 2 | Abril de 2013

 

Prevenir com Psicotrópicos: Novo uso, novos gozos

Montserrat Puig* (Espanha – Barcelona)

 

Em 10 de novembro de 1967, dirigindo-se aos jovens psiquiatras em formação no Hospital Sainte-Anne, Lacan advertia-lhes das barreiras que eles teriam de levantar na sua prática para não serem atingidos no encontro com o louco, evitando assim o encontro com sua própria angustia.  Ele fazia eco de uma mudança que então começava: “Agora, como vocês sabem, a psiquiatria – eu ouvi isto pela televisão – a psiquiatria faz parte da medicina geral, com base na ideia de que a medicina geral forma parte ela mesma, inteiramente no dinamismo farmacêutico. Evidentemente, coisas novas acontecem: se interfere, se dissimula, ou modifica... Mas não se sabe ao certo o que é modificado, nem para onde irão estas modificações, nem mesmo o sentido que elas têm; pois é de sentido que se trata...” 1 .


Os anos sessenta foram os anos pujantes da “revolução farmacêutica”, e Lacan já falava da derivação implacável, não somente da medicina geral, mas muito precisamente da psiquiatria, que mergulhou em uma prática de prescrição de psicotrópicos.
Os psicotrópicos orientam atualmente o diagnóstico, o prognóstico e o tratamento das doenças mentais, de tal sorte que as entidades nosológicas se reestruturam em função dos psicotrópicos propostos para o tratamento.


No entanto, Lacan não visava a eficácia dos psicotrópicos como tal, nem questionava seu poder de ação sobre a angustia, a agitação, as alucinações ou a depressão. O que lhe interessava mais que tudo era a sua função, na relação médico-paciente, - de “barreira” em relação à angustia. Isto é, ele questionava o uso dos psicotrópicos na prática clínica, chamando atenção ao fato de que a maneira de dar medicamentos é mais importante ainda que os sintomas que busca modificar pelo tratamento farmacológico.

*Montserrat Puig é psiquiatra, membro da Escola Lacaniana de Psicanálise e da Associação Mundial de Psicanálise
Mas, muitas coisas mudaram desde então. Fundamentalmente porque, essa época dourada terminou, deixando atrás dela, no entanto, uma mudança de paradigma na clínica psiquiátrica. De fato, longe daquilo que os laboratórios farmacêuticos querem fazer acreditar, a época de descobertas de novos psicotrópicos terminou na segunda metade dos anos setenta do século passado. O terreno explorado nas pesquisas farmacológicas é cada dia menos fértil, os avanços terapêuticos que proporcionam as novas moléculas são a cada vez menos perceptíveis e cada vez mais difíceis de colocar em evidência, o que explica o impasse em que esta indústria se encontra.


As licenças dos laboratórios expiram antes que eles possam lançar um outro medicamento em substituição, o que os obriga a introduzir variantes dos medicamentos já conhecidos, naquilo que eles chamam “curso de sucessores”2. Novas indicações de tratamento são propostas, não por uma molécula específica, mas por um segmento comercial preciso, em uma estratégia destinada a prolongar o tempo da licença. Frequentemente trata-se apenas de uma nova apresentação apoiada na biotecnologia, que é oferecida como novidade terapêutica, como é o caso da ritalina, prescrita para conter a “epidemia” de problemas de atenção e de hiperatividade.


O apelo para reagrupar os sintomas em novas síndromes e a luta para inclui-las em novas classificações nosográficas é feroz. Este processo (?) do medicamento-mercadoria implica algo a mais. Se, o medicamento não pode continuar a ser o único indicado por um “segmento do mercado”, trata-se de ampliar o mercado de novos consumidores. Estes podem ser outras pessoas, ou as mesmas tratadas por mais tempo.


A prevenção das recidivas, dos desencadeamentos de psicose, de episódios maníacos ou de sintomas depressivos ou de angustia, sem esquecer os quadros “subclínicos”3 que são os novos “segmentos de mercado” onde se pretende ampliar a população susceptível de ser tratada, e cada vez por tempo mais longo.
O perigo da medicalização preventiva começa a ser questionada, dentro da própria clínica médica. Quando prescrever de maneira preventiva? Qual a dose. Com que critérios? E o mais importante, pois este questionamento se coloca a partir da própria ética médica: Como saber quando suspender o tratamento, sem expor o paciente a novo episódio da doença? Na medicina defensiva atual, não há outra resposta a esta questão que “por muito mais tempo ainda.”


De tal sorte que o número de pessoas tomando medicamentos se estende e parece não ter fim.


Mas, a extensão da medicalização preventiva foi ainda além: prescrever antes da doença. Estou me referindo a uma nova síndrome que surgiu nos países escandinavos, foi sistematizada em Melbourne4, e está em vias de se estender a toda Europa: o estados mentais em risco. Três subtipos de estados mentais de alto risco foram estabelecidos:a presença de estados psicóticos leves, sintomas psicóticos breves e limitados (brief limited intermitent psychotic symptoms) e enfim, uma história familiar de psicose e de diminuição persistente do nível funcional. Nesta fase o objetivo do tratamento e´ “evitar, retardar ou minimizar o risco de transição para a psicose”5. É com este objetivo que os tratamentos psicológicos (TCC) e farmacológicos (com antipsicóticos, antidepressivos e ansiolíticos) são prescritos.


A indicação de “acompanhamento e prevenção” pertence à sociedade de risco à qual se refere Ulrich Beck6 . A epidemiologia em saúde mental entrou em cheio com estas indicações, aplicando métodos de controle de população praticados há muito tempo para determinar as leis da ordem social: quantificação de ações dos indivíduos para identificar as leis. – A epidemiologia em saúde mental não parte do Outro, mas de ações do indivíduo, da multiplicidade bizarra de ações individuais. Ela considera que as normas e as instituições sociais são o resultado desta multiplicidade de ações individuais, razão que explica que mediante o cálculo estatístico se busque isolar a regularidade destas ações de através da quantificação7 .


A teoria do “homem sem qualidades”8.  o cidadão médio das médias estatísticas- é aquele que orienta as ações das políticas preventivas em saúde mental. Medicaliza-se os sintomas antes que eles apareçam. Medicaliza-se o risco. O uso preventivo do medicamento amplia o campo da saúde mental em sua função de ordem pública.


Os guias de prática clínica, no caso de “estado mental de alto risco”, são exemplos disso. Pode-se ler ai a afirmação, sem o mínimo questionamento, que nos estudos epidemiológicos realizados através de questionários de saúde endereçados a um grande número de jovens para saber o que é um adolescente normal, e assim estabelecer o ponto em que se atingiria o nível de risco de psicose, cinco por cento da população geral poderia sofrer de alucinações ou de interpretações paranoicas da realidade em um momento de sua vida.


No discurso da época em que a prevenção generalizada é um dos significantes mestres, a ciência e o mercado proporcionam o objeto, o medicamento, para contribuir com esta tarefa preventiva.
O uso de medicamento como objeto a serviço da prevenção, introduz um novo uso que se inclui entre aqueles isolados por Éric Laurent em seu texto “Como avaliar a pílula?”9 - : o medicamento como tóxico, como placebo, no uso libidinal de “plus de vida”, e seu uso mais clássico de anestésico. Se, como relembramos neste texto, não se pode prescrever nem avaliar um medicamento sem o discurso que o acompanha, nem sem o efeito sobre o sujeito que o recebe, o medicamento preventivo introduz uma variação nos usos de medicamentos, em curso até este momento.


De um lado, o discurso que acompanha a prescrição mudou. O psiquiatra que o prescreve, agente do discurso sem sabê-lo, não trata o sintoma e sim a possibilidade de o suportar. O “risco do sintoma” adquire assim um valor patológico em si mesmo, devendo ser tratado. O sintoma torna-se o risco em si. A prática clínica psiquiátrica se encontra então orientada pelo sintoma-risco, e o protocolo se apresenta como o único guia possível. O medicamento deixa de tratar os verdadeiros sintomas e desliza para o tratamento dos índices estatísticos do desvio da média estabelecida de maneira quantitativa. O estatuto do sintoma construído pela psicopatologia clássica é assim modificado.
A respeito do efeito no sujeito que o recebe, consideramos que este sintoma-risco se apresenta a ele mesmo como um futuro a ser evitado. E o medicamento se oferece como um elemento anulador desse futuro provavelmente à sua espera, como um neutralizador das consequências dos maus encontros. De tal maneira que a resposta do sujeito, sempre singular, fica anulada. Espera-se que o sujeito aprenda a ler nos efeitos do medicamento e na sua vida, a doença a aparecer anunciada de maneira estatística.


Os efeitos simbólicos, imaginários e reais do medicamento sobre cada um, um a um, não podem ser previstos, medidos, quantificados. A indeterminação, a contingência, a irredutibilidade do sintoma à norma média, impedirão em cada caso a normalização esperada no ideal imperativo da prevenção generalizada. E, toda uma nova clínica sintomática atende o sujeito que fará seu sintoma “com o medicamento”. Ele fará seu sintoma com os retornos de verdade e com os retornos no real desse novo gozo, aquele do sintoma-risco que lhe propõe o Outro da prevenção e aquele do corpo medicalizado.

 

* Sr.. Puig é psiquiatra, membro da Escola Lacaniana de Psicanálise e da Associação Mundial de Psicanálise. Tradução livre autorizada pelo autor.

 

Tradução: Joselita Macedo

Revisão: Alma Rosas


1 Lacan, J., Petit discours aux psychiatres, 1967, inédito

2. Pignarre, P.Le Grand Secret de l´industrie pharmaceutique. La Découverte, Paris, 2003

3 Trata-se de um quadro que não preenche exatamente os critérios do DSM, o que dificulta o diagnóstico.

4 Fazemos referência aqui aos estudos e protocolos apresentado por Yung Macgorry et colaboradores.

5 Ibid.

6 Beck, U., La societé du risque. Sur La voie d´une autre modernité, Aubier, Paris, 2001

7. Seguimos aqui os desenvolvimentos de Jacques Alain Miller, em seu curso do ano 2004. Em particular as lições intituladas “L´ère de l´homme sans qualités” publicado na revista de La Cause freudienne, 57, Navarrin/Seuil, Paris, juin 2004.

8 Em referência ao título do romance de Robert Musil, “L´homme sans qualités”, publicado em 1930.

9 Ornicar?, 50, 2003, p. 61-73.