A regra da incomensurabilidade
Paulo Gabrielli
Vamos abordar duas advertências que encontramos no texto “A psicanálise. Razão de um fracasso”.
A primeira é uma tomada de posição frente a um tipo de psicanálise que se organizava institucionalmente para combater o ensino lacaniano, sobretudo a posição teórica de Daniel Lagache que é duramente criticada por Lacan.
O alerta era para demonstrar a razão do fracasso a que estava sujeito a psicanálise que se afastava do propósito de se constituir cada vez mais distante do seu princípio fundamental; que deveria ser a ruptura do desconhecimento promovida pela descoberta do inconsciente.
A psicanálise que Lacan quer mostrar a razão do fracasso seguramente não é aquela transmitida por seu ensino que se sustenta, naquela época, na regra da incomensurabilidade.
No sentido matemático o termo incomensurabilidade tem origem na Grécia Antiga e quer dizer que existem relações de duas grandezas que não tem medida comum, p. ex., o perímetro do círculo é incomensurável com seu diâmetro. As relações incomensuráveis são representadas por números irracionais.
Segundo Martins o conceito de incomensurabilidade foi introduzido, em 1962 por Kuhn e Feyerabend, e diz respeito à impossibilidade de comparação entre duas teorias científicas diferentes através de uma redução ou de outros métodos habitualmente discutidos no âmbito da filosofia da ciência1.
A regra da incomensurabilidade é utilizada por Lacan para explicitar a impossibilidade de comparar os dois sexos utilizando-se somente a lógica fálica e apresenta com antecedência o que será a mais extravagante formulação do ideário lacaniano que iniciará, na década de 70, a etapa de seu último ensino expressa no aforismo: Não há relação sexual. Para ele qualquer psicanálise que não leve em conta essa proposição está destinada a fracassar.
A relação sexual é impossível porque estamos diante de magnitudes que não tem medida comum tais como aquelas que podemos abreviar chamando-as de homem e mulher.
Cito Lacan: “...não imporia às mulheres a obrigação de tosear pelo calçador da castração o estojinho encantador que elas não elevam ao significante...”2.
Isso quer dizer que só temos o significante fálico para escrever o gozo na entrada dessa aventura que é a relação com o sexo. Falta um significante que possa escrever o Outro gozo.
Para o sujeito do inconsciente a relação com o sexo não é distinta em cada metade das magnitudes que não pode escrever dois gozos sendo possível apenas um, o gozo fálico.
É esse o sentido do aforismo lacaniano, a relação sexual não existe porque tanto para o homem como para a mulher só há um significante para escrever o gozo, mas do lado da mulher há um gozo que escapa ao significante, um desmedido gozo do Outro.
Segundo Lacan esse Outro “... convém colocá-lo como termo que se baseia no fato de que sou eu que falo, que só posso falar de onde estou, identificado a um puro significante. O homem, uma mulher, eu disse da última vez, não são nada mais que significantes”3.
Disso resulta que não há relação de Um com o Outro, daí se produz tudo que faz suplência e que Freud chamou de as formações de compromisso e Lacan as reuniu sob a denominação de sintoma analítico.
Toda técnica que busque o sucesso terapêutico concebido como uma tentativa de fazer a relação sexual existir está destinada a fracassar, somente aquela que considera o fracasso como estrutura e não como acidente tem chance de ser bem sucedida.
A experiência clínica da psicanálise demonstra o esforço efetuado pelos casais preocupados em encontrar qual é a sua forma, particular, de fazer suplência à inexistência da relação sexual e poder operar as relações amorosas.
A norma é não poderem pensar a experiência amorosa fora da referência da felicidade, é uma concepção fundamentada na dimensão do imaginário, imposta pela experiência primária de apreensão da imagem de nosso próprio corpo, que a todo custo figuramos como completo, como um organismo harmônico. O ser humano se constitui a partir do narcisismo.
O casal quer ter, a esse respeito, um privilégio. Organiza-se a partir de um tipo especial de narcisismo, utilizado aqui no sentido de que imperfeito por estrutura, se obriga a se ver e a se fazer ver completo, com dificuldade de se pensar fora de um mundo fechado sobre si mesmo. Qualquer manifestação que invada o seu território é percebida como ameaça à sua própria existência e interpretada como um acontecimento infeliz que poderá resultar num dano irremediável.
Então o casal se esforçará para corrigir esse dano e, embora a experiência demonstre a impossibilidade dessa correção, isto não é suficiente para que possa compreender que a vida conjugal está estruturada a partir do desencontro.
O dano não é um acidente, é o núcleo em torno do qual se constrói a vida dos casais. A relação conjugal começa com a ruptura.
Para Lacan é necessário que exploremos uma nova lógica que deve ser construída a partir de que “...nada do que acontece em decorrência da instância da linguagem pode desembocar, de modo algum, na formulação satisfatória da relação”.4
Como já havia comentado a respeito das degradações que tem sofrido a psicanálise no clássico texto “A direção do tratamento” escrito em 1958: “O pior é que as almas que se derramam na mais natural ternura acabam se perguntando se satisfazem a normalidade delirante da relação genital – fardo inédito que, a exemplo dos que o Evangelista amaldiçoa, amarramos para os ombros dos inocentes” 5.
Por último mencionamos a segunda advertência de Lacan que tem um caráter oracular: “Quando a psicanálise houver deposto as armas diante dos impasses crescentes de nossa civilização (mal-estar que Freud pressentia) é que serão retomadas – por quem? – as indicações de meus Escritos” 6.