twitter

nº 8 | Ano 2 | Abril de 2013

 

Lilith

A Outra Face de Eva

Ricardo Cruz

 

Lilith, figura da mitologia judaico-cristã, é a fêmea por excelência rejeitada na cultura e na religião cristã. Tida como primeira mulher de Adão, criada do mesmo barro que ele, reivindicou igualdade, não se sujeitando ao domínio masculino. Protestava contra as posições do ato sexual que a obrigava a “ficar por baixo” do corpo do outro. Descontente ou descontentando a Deus e ao homem, fugiu ou foi o primeiro ser expulso do paraíso. Transformada em serpente do mal, espírito das trevas, pois, uma vez abandonada, trocada por “outra”, por Eva, representa o ódio contra a família, a inimiga dos casais legitimados pelo casamento religioso.


Por ser insubmissa e uma vez rejeitada ou expulsa sua primeira mulher, Adão, até o surgimento de Eva erra pelo paraíso. Dominado pela voluptuosidade de Lilith, agora não mais sua companheira, é constantemente torturado por sonhos eróticos. Responsabilizando a devassa Litith pelo pecado da zoofilia, ele, Adão, sai a procurar satisfação sexual com as fêmeas do reino animal. Nem as cobras lhe escapam. A partir desse desvario de Adão, a acasalar-se a torto e a direito, corre a lenda que os poderes de Lilith a transformavam, para dar-lhe satisfação, mas pondo-o em pecado, em búfalas, vacas, jumentas, em ovelhas... Mas desde sempre, Lilith, também tomada como o espírito do vento, é na maioria das vezes retratada como serpente. Uma espécie de Jenny de Bertold Brecht (cantada por Chico Buarque ou Nina Simone), a quem não se atiram pedras, bosta, mas os significantes de bruxa, devassa, demônio, histérica, louca, significantes estes com os quais desde há muito se nomeiam as mulheres adúlteras que em certas partes do mundo ainda são condenadas à morte por apedrejamento.

 

Personificação da ambigüidade, Lilith se apresenta ora como a fêmea sedutora, deslumbrante, irresistível, ora toma a aparência de uma medusa, com serpentes nos cabelos, a que causa horror e dela se desviam todos os olhares. Aqui há uma aproximação inevitável com duas outras versões clássicas da feminilidade: Antígona e Medéia.

 

No filme As Três Faces de Eva (direção de Nunnaly Johnson 1957), mais psiquiátrico que psicanalítico, a personagem Eva (interpretada por Joanne Woodward), é diagnosticada como distúrbio de personalidade múltipla, o que serve bem ao gosto norte-americano de tratar a dissociação histérica. Consta que o filme baseou-se em um caso clínico real e a personagem apresenta-se ora como Eva normal, uma Eva Branca. Alterna-se a esta, de um momento para outro, Eva Negra, sua face mais cruel, envolvida em atos de maldade e perversão, subjugando a Eva Branca, que nada sabe daquela, mas injustamente, é punida pelos atos de sua oculta versão perversa. Por aqui, na linguagem do cinema, pode-se até dizer que mito e realidade se aproximam. Para Barthes, o mito é uma fala, necessário que contenha um sistema de comunicação, uma forma da “fala” com limites históricos, contendo uma significação que passa de uma existência fechada à oralidade, passível de decifração. Segundo Stella Maris Rodriguez (no seu artigo Lilith – Antígona – Medéia: Três Versões da Feminilidade?), a palavra Lilith tem etimologia grega, derivada de layil, noite, daí para monstro das trevas, chegando nessa versão até o folclore árabe.

 

Apresenta-se Lilith, uma vez transformada em mito, com várias faces ou semblantes. Em diversas interpretações da mitologia talmúdica através da História, serviu-se dela Michelangelo que a pintou na Capela Cistina; ainda na atualidade costumam os artistas representá-la, seja em pinturas, em retratos ou estampas, dando-lhe denominações diversas, tais como A Arrependida, Inocente, Bruxa, Devastadora, Vulgar, Melancólica, Vampira, e o que mais a imaginação dos artistas a possam representar. Tão diversa Lilith, consta que nem Deus, Jeová, escapou de seus encantos, tornando-se ela, assim, sua esposa, uma vez que Shekhira, a face feminina de Deus, tomando a Lilith como serva, levou-a até Ele. Desse modo, através da mitologia babilônica-assírio-hebraica, tem-se a mais antiga notícia de uma relação incestuosa. Deu-se também Lilith de perambular pelos escondidos dos desertos e periferias do Mar Negro, dando-se aos demônios e com eles tendo centenas de filhos.

 

Numa visão Jungiana, estaria Lilith representada por duas figuras do feminino irreconciliáveis, daí dois arquétipos que chegaram à contemporaneidade, a da mulher submissa, fraca, romântica e dependente, em contraposição com a voluntariosa, liberta, independente, pragmática, mais para ser a “Outra” do que a esposa da tradição patriarcal, dona, esta “Outra”, de seus desejos e, portanto, voraz, a que nada lhe basta — pois haverá sempre a falta na castração, dirá a psicanálise.

 

Dentro da visão lacaniana as verdadeiras mulheres teriam algo de Lilith, de loucas, de extraviadas da norma, podemos verificá-lo da forma como ele trata Medéia, marcada pela lógica do não-todo, na tragédia em que assassina os filhos fazendo prevalecer seu desejo feminino, mais que o desejo maternal. Já em Antígona há uma posição diversa, mais para a histérica, a que é capaz de sacrificar-se por um ideal, pelo amor ao outro representado pelo irmão, por submissão à Lei patriarcal. Eis, portanto, Antígona mais identificada a Eva, obediente, a que é sacrificada ao amor, a se fazer desejo do outro. Pedaço da costela de Adão.