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nº 8 | Ano 2 | Abril de 2013

 

O sem-tempo

Sônia Vicente

 

 

A análise é uma experiência intrinsecamente ligada à noção de tempo. Qual seria então a relação entre inconsciente e tempo? Desdobrando um pouco mais essa pergunta: qual a relação entre inconsciente e sessão analítica? Desde sempre, vimos Freud enunciar: “o inconsciente, não conhece o tempo”, concebendo-o como eterno, como inalterável, qualificado de atemporal, o que quer dizer que os processos inconscientes não seriam nem ordenados, nem modificados pelo tempo. É preciso que se fique advertido de que Freud, ao fazer essas afirmações, baseava-se na “hipótese do inconsciente”, sendo esse, então, inferido como “já estando lá” e também, a partir defeitos desorganizadores com os quais o sujeito tinha que lidar, não conseguindo dar conta pela decifração, o que nos deixa entrever a dimensão real do inconsciente já aí conotada (Freud, 1912/1977; Miller, 2000b).


No seu retorno a Freud, Lacan faz uma nova leitura da noção do tempo, quando nos envia ao Nachträglich freudiano (Freud, 1996/1977; Guéguen, 2000), ao só-depois, formalizando o “tempo reversivo” como tempo lógico (Lacan, 1945/1998). Falar da existência do inconsciente implica, necessariamente, em remeter ao só-depois que indica a hiância entre os instantes temporais e demonstra a impossibilidade de um instante ser igual a si mesmo.
O instante do tempo faz advir a necessidade lógica sob a forma simultânea de fazer o tempo presente inscrever-se no passado, ganhando o sentido inconsciente de ter sido escrito antes e o passado retornar ao presente tendo como “pivô” o Sujeito suposto Saber, significação que opera reduplicando e escandindo a cadeia significante. Nessa via é a transferência que permite ter acesso e introduz retificações que mudam a relação com o que há de real no inconsciente, o que faz supor que este resulta da temporalidade da seção analítica. Portanto, para ele o inconsciente tem uma afinidade essencial com o tempo, enquanto se inscreve como acontecimento na sua trama (Miller, 2000b, 2004).


Para Lacan (1964/1979b), o inconsciente estruturado como uma linguagem tem uma temporalidade pulsátil, sendo da ordem do não realizado, do que está por se realizar, o que lhe confere o estatuto ético de “querer ser”. Entretanto, o último ensino de Lacan faz avançar a experiência analítica, apresentando uma concepção do inconsciente cuja referência é uma dimensão assemântica. Ao apostar no significante Um, diz-nos que só com essa redução pode aparecer um momento em que se é convocado a julgar e a concluir. Constatamos, então, que, para Freud, a referência fundamental do inconsciente é o passado; para Lacan, é o futuro contingente (Guéguen, 2000; Miller, 2004).


Sendo assim, se a sessão analítica tem sua regularidade, se nela existe algo de invariável, é somente para possibilitar o surgimento de uma manifestação sintomática do inconsciente. É nessa lógica que a sessão deve ter tempo variável, ou seja, comportar a manobra do que chamamos ponto suplementar, um ponto de basta que, por não ser homogêneo aos outros, pode ser inserido aonde quisermos, o que faz o término da sessão, por estrutura, irregular, fazendo surgir o imprevisível.


Em outras palavras, essa manobra é o que expressa a função de relançamento que tem uma interrupção, ao devolver ao ato suas duas dimensões: de corte e de infinito (Miller, 2000a). A escansão inesperada dá a cada sujeito que nos demanda tratamento a esperança de um encontro desde sempre adiado. É preciso ressaltar que esse ponto marca uma das principais inovações trazidas por Lacan na direção do tratamento, pois, ao introduzir a associação entre tempo e interpretação, praticamente reduz a interpretação a um corte na temporalidade do discurso do analisando.


Na Subversão do Sujeito e Dialética do Desejo, Lacan (1960/1998) diz que o neurótico é um Sem-Nome, por negar com todas as forças a castração que o permitiria aceder ao desejo. Nessa via, vou seguir Lacan com o caso de um sujeito que se nomeia um Sem-Tempo. O percurso analítico atesta que o que faz a diferença na relação do sujeito com o uso do tempo é a presença do analista.
“Quero saber qual é o meu tempo.” Esse foi o primeiro enunciado de F. no encontro com o analista, ficando à espera de uma resposta. A despeito de imediatamente pensar que estava frente a um sujeito que iria questionar o “tempo lacaniano” das sessões, o analista fez silêncio, ao levar em conta que o princípio dessa experiência é uma manobra de tempo, deixando-o em espera para fazer com que ofertasse seu objeto.


Após alguns segundos de reflexão, o sujeito enuncia: “Não posso esperar; agora não tenho mais tempo.” E por que veio? Surgiu uma interrogação de forma incisiva. Surpreso, retrucou: “Preciso me modificar para começar a viver.”


Esse sujeito referia-se ao diagnóstico que acabara de receber de uma doença autoimune. Mostrava-se incrédulo, apesar de por anos a fio ter mantido relações com os mais variados parceiros, sem tomar nenhuma precaução. “Como isso pôde acontecer?” repetia.
Sabia que estava arcando com a responsabilidade de seus atos, expressa num estudar de forma compulsiva tanto os assuntos da sua profissão quanto da sua doença. Queria saber tudo que não entendia. A doença interrompeu a sua “rota”, marcada por um não querer saber e agora só tinha de consistente o conhecimento. A ciência, a princípio, era a solução, pois a procura desse conhecimento criou a fantasia de poder dominar seu tempo.


Nessa perspectiva, F. desenvolveu rituais obsessivos de contagem de elementos alimentares e intelectuais, que devia ingerir, na tentativa de ter controle sobre a morte. Dizia-se com muita pressa, correndo atrás do tempo, sempre acompanhado do pensamento “se estiver vivo até lá.” Então você quer estar vivo, até lá? A ciência, ao marcar a data da sua morte, instala a função da pressa, precipitando-o na insistência em recuperar o não realizado, revisando o passado. O corte, marcando o tempo futuro, relança a possibilidade de viver, não mais “desperdiçando o tempo”.


Conduzia a vida usufruindo de sua imagem, fazendo da beleza seu trunfo, seu único valor. “Os belos podem tudo. Só os gênios e a beleza são infalíveis. Falha é para os mortais”, afirma. Ficou sempre na busca da perfeição, não sabendo lidar com o que denominava “um corpo velho” que o aproximava da possibilidade do encontro com a morte, fazendo surgir a angústia.


Apresentava-se como vítima da passagem do tempo e, portanto, marcado de todas as formas pela negatividade, ao ver-se decaído da sua fantasia de eternidade. Em consequência, desenvolveu um horror ao tempo, na medida em que este introduz o desgaste, o envelhecimento.


Paradoxalmente, essa fantasia de imortalidade surgia para esconder o desejo de que tudo terminasse logo, expresso numa percepção de que atrás de uma vida aparentemente satisfatória, nada existia. “Tudo era encenação”. Não havia planejado o que estava lhe acontecendo; sempre pensou que morreria antes. Ressaltado o advérbio temporal antes, revelou que desde sempre sofria com a questão da transitoriedade, segundo a qual tudo é “[...] como uma luz que acende e apaga; nada antes e nada depois. Tudo vai mesmo se perder no esquecimento”. Tal construção evidencia a vertente atemporal do gozo narcísico. Vivia do pré-texto porque temia o texto inconsciente. Assim, glosava a sua própria existência.
O tempo passa e F. não agrava a doença; entretanto, permanece imerso na queixa do envelhecimento, até trazer um sonho que se repete indicando, conforme Freud, um trauma. Está num cemitério e um homem corre atrás dele. Quando o está alcançando, ele acorda berrando: “O que esse homem quer de mim?” Ao gritar, também na sessão, acrescenta: “O que devo a esse homem? Ele, morto, vem cobrar minha mãe?” Um morto vivo foi a interpretação, incidindo na hipótese do pai vivo que o apavorava, por pensar que ele o destruiria.

 

Nesse sujeito. observamos a suspensão do gozo, projetando na sua história a eternização do amor insatisfeito, por meio do culto ao homem morto. Este que traz como efeito o medo de que o morto volte para gozar do vivo. Trata-se, para F., do castigo do pai. Detido na demanda de um amor idealizado, pensando o amor somente pela via da pretensa perfeição, interrompia suas realizações e relacionamentos, evitando o momento de concluir. F. destrói o Outro, marcando sua falta como forma de sentir-se vivo. Ironicamente, sem perceber a morte do desejo.


A instalação do Sujeito suposto Saber aparece na transferência, no que chama “sua loucura”. “Estou só, nada mais me interessa. O que me resta? Aí penso sem parar que só me resta você, para garantir minha vida, apesar de saber que isso é impossível.” Mais um corte, desta vez com um tom interrogativo: saber impossível? Sai tropeçando. O Sujeito suposto Saber opera a reversão temporal, a pura experiência do tempo vivida na sessão pelo sujeito, como inédita.


O corte, ao revelar sua busca incessante por um saber impossível, o real, do qual tinha horror, possibilitou uma conexão entre a atemporalidade do inconsciente e a temporalidade da interpretação, indicando, para ele, a necessidade de uma releitura do “seu texto original”. A interpretação inscreve-se no tempo, para provocar a espera de um encontro surpresa que irá permitir a irrupção inesperada do sem-sentido. Essa é a essência do ato analítico (Lacan, 1964/1979a; Miller, 2009).


Como manobra transferencial, na direção do tratamento, suas sessões foram de tempo variável, o que o deixava “sem rota”, num tempo regido por um ainda não saber. Os cortes visavam cernir um ponto singular na selva de significantes que ele produzia, na tentativa de se responder sobre a morte dita iminente. Assim, as sessões tornaram-se não um espaço de gozo, mas a ocasião de um reencontro com o inconsciente e com a verdade, que começa a se contextualizar, não mais como acúmulo de saber, mas como saber suposto. O amor ao saber levou F. a se interrogar sobre sua verdadeira questão: “O que devo fazer para me manter vivo?”
Vimos, nesse caso, a sessão analítica tomada não como uma prática de ritualizações, mas como uma experiência em ato que visa permitir que a atemporalidade do inconsciente possa emergir na temporalidade da sessão. Um lapso de tempo especial que aponta, pela interpretação, para um ponto do real singular no discurso do analisando, possibilitando uma retificação do sentido e da modalidade lógica de sua existência enquanto falasser (Miller, 2000a, 2004). Assim, podemos dizer: se o inconsciente não conhece o tempo, há uma temporalidade da libido, tanto no amor, quanto no desejo e no gozo.


Esse sujeito que tem sua neurose suspensa em um tempo infinito, somente quando o significante do fim emerge (Freud, 1918/1977), ele passa a contar o tempo que lhe resta, evidenciando como o que há de atemporal no gozo do sintoma se “temporaliza” ao inscrever-se na lei do significante. Enfim, demonstra-nos que o que se pode contabilizar inscreve-se na ordem fálica e o que não é contábil, ou seja, hors-temps (fora tempo), inscreve-se no registro do real (Briole, 2000).


Ao demandar uma análise no momento de concluir sua vida, teve a surpresa da sessão analítica revelar-se como o lugar privilegiado em que se estabeleceu a possibilidade de retificar seu sintoma, como modo de gozar do inconsciente, descolando-se da fantasia de eternidade, para aí começar a viver. O percurso de uma análise seria o tempo necessário para que o sujeito conseguisse saber inventarum modo singularde lidar com o seu sofrimento e encontrar as decisões necessárias à sua vida, para aí gozar.
 Paradoxalmente, para isso, é preciso tempo...

 

Referências Bibliográficas

BRIOLE, Marie Héléne. “Le temps de savoir. La Cause freudienne”. Revue de Psychanalyse, Paris, n. 45, (2000), p. 3-4.
FREUD, Sigmund. (1912/1977). “A dinâmica da transferência”. In: SALOMÃO, Jaime (Direção-Geral). Obras Psicológicas Completas de Sigmund Freud – Edição Standart brasileira. Rio de Janeiro: Imago. p.133-148. V. XII.
FREUD, Sigmund. (1996/1977). “Carta 52.2”. In: SALOMÃO, Jaime (Direção-Geral). Obras Psicológicas Completas de Sigmund Freud – Edição Standart brasileira. Rio de Janeiro: Imago. p. 164-187. v XII.
FREUD, Sigmund. (1918/1977). “História de uma neurose infantil”. In: SALOMÃO, Jaime (Direção-Geral). Obras Psicológicas Completas de Sigmund Freud – Edição Standart brasileira. Rio de Janeiro: Imago. p.19 -151. v. XVII.
GUÉGUEN, Pierre-Gilles. “Le temps de Freud e celui de Lacan”. Revue de Psychanalyse, Paris, n. 45, (2000), p. 29-38.
LACAN, Jacques. (1964/1979a). “A transferência e a pulsão.” In: ______. O Seminário, livro XI: Os quatro conceitos fundamentais. Rio de Janeiro: Zahar. p. 119-189.
LACAN, Jacques. (1964 /1979b). “O inconsciente e a repetição.” In: ______. O Seminário, livro XI: Os quatro Conceitos Fundamentais. Rio de Janeiro: Zahar. p. 23-65.
LACAN, Jacques. (1945 /1998). “O tempo lógico e a asserção de certeza antecipada”. In: ______. Escritos. Campo Freudiano no Brasil. Rio de Janeiro, Zahar. p. 197-213.
LACAN, Jacques. (1960/1998).  “Subversão do sujeito e dialética do desejo no inconsciente feudiano”. In: ______. Escritos. Campo Freudiano no Brasil. Rio de Janeiro: Zahar. p.807-864
MILLER, Jacques-Alain. A erótica do tempo. Rio de Janeiro: Escola Brasileira de Psicanálise, 2000a.
MILLER, Jacques-Alain. Pontuaciones sobre “La dirección de la cura”. In: MILLER, Jacques-Alain. Conferencias Porteñas: Tomo II - Desde Lacan. Buenos Aires: Paidós, 2009. p. 175-228.  cap IV - La cura analítica.
MILLER, Jacques Alain. Los usos del lapso. Los cursos psicoanalíticos de Jacques-Alain Miller. Buenos Aires: Paidós, 2004.
MILLER, Jacques Alain. “La nouvelle Alliance conceptuelle de l’inconscient et du temps chez Lacan”. Revue de Psychanalyse, Paris, n. 45, (2000b), p. 7-16.