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nº 8 | Ano 2 | Abril de 2013

 

Inventa-mundo: o lugar de uma instituição orientada pelo discurso da psicanálise

Wilker França

 

O Criamundo é um projeto social da Fundação de Apoio à Pesquisa e Extensão (FAPEX) que visa a capacitação de sujeitos de estrutura psicótica, através de oficinas produtivas, para uma possível (re)inserção no mercado formal de trabalho. As oficinas produtivas não possuem finalidade terapêutica, apesar de algumas vezes operarem efeitos dessa ordem.

 

A rede de saúde mental é formada por diversos dispositivos. Dentre eles estão o CAPS (Centro de Atenção psicossocial), os ambulatórios, as residências terapêuticas, entre outros. A organização dos serviços ocorre baseada no princípio da hierarquização e da regionalização, ou seja, obedece a níveis crescentes de complexidade e são circunscritos a uma determinada área geográfica.

 

O Criamundo que trabalha com a psicanálise aplicada leva em consideração que a transferência não poderia ser orientada simples e banalmente pela área abrangida do usuário. O estabelecimento de uma transferência não obedece às coordenadas lógicas da burocracia e dos modelos de eficiência. Assim, Veras (2007) assinala:

 

As novas práticas de regulação que visam equacionar o crônico problema de falta de vagas nos dispositivos de Saúde Mental, ao tentar importar o modelo médico, habitualmente não levam em conta que tratar o sofrimento psíquico é diferente de tratar a doença corporal. (...) O paciente retorna ao serviço por gostar da comida, de certo profissional, em suma, de uma particularidade que se torna significante da transferência (VERAS, 2007, pág. 4).

 

Podemos citar o caso de Barbara que reside em uma região que fica a 30km da sede do Criamundo e mesmo assim retorna todos os dias para a instituição. Ela diz: “É um trabalho que eu gosto do meu patrão. É um tipo de artesanato que dá chance as pessoas a se voltar para o trabalho, é um trabalho que exige as mãos e as vistas”.

 

Poderíamos demarcar então, um lugar êxtimo dessa instituição em relação à rede, pois ao operar efeitos clínicos nos sujeitos, repercute consequências íntimas ao tratamento oferecido pela rede, ao mesmo tempo em que se posiciona radicalmente externa a algumas leis burocráticas que regula essa rede.

 

O discurso psicanalítico ocupa um lugar parecido dentro do campo da Saúde Mental, pois apesar de ser mais um discurso dentre tantos outros que formam o referido campo, se  ocupa do que os outros não dão importância ou querem eliminar, daquilo que está fora de qualquer “saúde” e de qualquer “mental”, dos dejetos, como bem pontuou Miller (2010).

 

Os efeitos de uma prática estão presentes no dito de uma voluntária da instituição: “Na depressão eu chorava bastante. Achava que meu médico não deveria morrer nunca. E escutava uma voz que dizia ‘se jogue’ toda vez que eu passava próxima de janelas. Só comecei a melhorar quando entrei no criamundo. Aqui eu não fico pensando que vou morrer e nem que ainda não morri”.

 

O Criamundo é contrário aos ideais normalizadores e imperativos do “todos trabalhando” e se orienta pelas singularidades dos casos. Na instituição as mesmas mãos que tecem cada produto de forma única são as mesmas que constroem alguma forma de laço social.
Miller (2003) pontua que a invenção se diferencia da criação, pois a criação enfatiza o caráter ex-nihilo, a partir do nada. A invenção é, nesse caso, a criação a partir de materiais existentes.

 

Dessa forma, o Criamundo é uma instituição que tenta ser tão leve quanto uma instituição possa ser, não tendo suas normas e regras um caráter de lei, priorizando a singularidade de cada sujeito acolhido, podendo estes permanecerem sem tempo pré-determinado.  Assim, sem standard, há um Criamundo para cada sujeito que se utiliza da instituição para inventar com seu sintoma. Inventando-mundo e favorecendo a construção de alguma forma de laço social possível a partir das singularidades.

 

REFERÊNCIAS

MILLER, J. A. “A salvação pelos dejetos”, Revista Correio, Revista da Escola Brasileira de Psicanálise, São Paulo, n.67, 2010.

MILLER, J. A.” A invenção Psicótica”. Opção Lacaniana. São Paulo, nº 36, 2003.

VERAS, M. “Saúde Mental: uma clínica sem privilégios.” Revista Eletrônica Clinicaps nº 3. p.4. 2007.