skip to Main Content

Percursos oníricos: o Real entre sonho e análise

Christian Schloe, “The Fellowship”
Christian Schloe, “The Fellowship”
Glaycianny Pires Alves Lira
Rhuan Pablo Barbosa da Silva

 

“[…] O inconsciente é muito exatamente a hipótese de que a gente não sonha apenas quando dorme”.

(Jacques Lacan, 1977)

Lacan (1964) questiona, no Seminário 11, “Como o sonho, portador do desejo do sujeito, pode produzir o que faz ressurgir à repetição o trauma?” (p. 55) – quando propõe esse certame, o que Lacan faz é questionar o funcionamento do sonho, colocando-o como algo que possui certa lógica nas produções do sujeito, através da repetição e da possível elaboração sobre as formações traumáticas. Seria possível, então, pensar a estrutura do sonho análoga ao caminhar de uma análise, como aponta Freud (apud QUINET; ALBERTI, 2012), ou seja, seria admissível cogitar a sucessão de sonhos, em uma análise, como algo da ordem de um percurso?

Se pensarmos que sim, e que as formações oníricas acompanham o percurso de uma análise – não em uma linha sucessiva, ou linear, para frente, mas enquanto laufen[1],ou per[2]; por meio de um curso, uma via por onde se pode andar e “recordar, repetir e elaborar”[3] – como seria realizável; se é possível o deslizamento significante, ou trocadilho; considerar esse percurso onírico?

“De fato, as fantasias e os devaneios da vigília expressam os mesmos desejos, conscientes ou não, que podem vir a surgir nos sonhos durante o sono” (COUTINHO, 2009, p. 56). Há, portanto, uma ideia de não distinção entre acordado e dormindo, podendo as produções oníricas acompanharem as elaborações analíticas do sujeito e o sonho seria, nesse sentido, mais um mediador entre o Eu e o inconsciente, como já propunha Freud (1900) ao colocá-lo como uma formação do inconsciente (como os chistes e os atos falhos) e, portanto, uma via de acesso a ele.

O sonho ocuparia uma posição régia nessa encruzilhada de conteúdos inconscientes e, segundo Lacan (1957) propiciaria um despertar do desejo, através desse acesso, sendo, em um fim último, um encontro com o Real – é a partir dessa conjectura do encontro, ou de um (des)encontro que propicie o retorno ao mesmo, esse mesmo que se repete, mas nunca é igual, que pensaremos o sonho como esse medianeiro entre sujeito e objeto. Ou, como aponta Costa (2006) “(…) a elaboração onírica resulta de uma mediação necessária para suportar o real (…) Sonhar é a possibilidade de inserir um diferencial entre um lugar de sujeito e a posição de objeto no mundo e nas relações” (p. 37).

Então poderíamos pensar no sonho como um atravessador? Através da dor, do traumático que retorna na elaboração do sonhador seria possível atravessar algo da ordem de uma construção – como uma ponte que atravessa-a-dor do sujeito. Como uma travessia. Attraversiamo, do italiano, é um convite, uma questão: vamos atravessar? Essa travessia que remete tanto a uma ponte quanto a um processo, faz menção à fantasia – em uma análise, a travessia da fantasia seria esse meio; ou poderíamos falar losango; onde se passa de sujeito ($) a objeto (a). Seria o sonho uma possibilidade de percurso, dentro de uma análise, dessa travessia? Ou consideraríamos o sonho como um atravessamento no processo, parte dele?

Se ponderarmos o sonho como um rébus (algo da ordem de um equívoco – uma palavra tomada em um outro sentido, que não lhe é contumaz) como propõe Freud (1900), e, ainda, tomarmos o ensinamento de Lacan (2005) sobre o funcionamento do sonho enquanto linguagem e, portanto, que precisa de um leitor para que um texto se produza des-cifradamente, podemos pensar o sonho como endereçado.

Esse endereçamento é análogo ao processo analítico, sob transferência. Então seria o sonho uma estrada marcada à espera tanto de um caminhante-analisando, quanto de um guia turístico-analista? Guia turístico porém, pressupõe legalidade para atuação, já que em uma análise esse sujeito que carrega uma marca, caminha por vias clandestinas, e a interpretação dos sonhos é uma delas, poderíamos inferir, então, uma posição por parte do analista de coyote[4]? Um coyote-analista?

Em carta à Fliess, Freud (1899/1986) afirma que “Invariavelmente, o sonho visa a realizar um desejo que assume diversas formas. É o desejo de dormir! Sonhamos para não ter que acordar, porque queremos dormir” (p. 355). Lacan (1992) retoma essa interpretação de Freud sobre a tendência ao dormir para não acordar com o que chama de despertar – esse abrir os olhos ao Real e continuar sonhando, na realidade, a partir deste (des)encontro.

O analista-coyote seria peça fundamental, então, neste processo; no despertar, tanto do sonho quanto do Real da clínica, do corpo, do sujeito, do impossível. A figura do atravessador ancorada no coyote – um analista-coyote – remete a um pagamento pelo ato, é o que Lacan (1998) afirma sobre o analista pagar com o corpo, com sua pessoa (suporte para a transferência). O analista paga com o corpo e o sonhador paga com o desejo, o desejo de suportar uma interpretação, uma elaboração, um per-curso, um curso para desvelar e suportar esse encontro com o Real que acontece tanto no sonho quanto em uma análise. Há percurso no sonho, portanto, há uma vazante por onde, a despeito (ou com ajuda das porosidades) da censura o conteúdo inconsciente manifesta-se, de diversas formas, e faz marca – como a jusante de um rio ou a jouissance analítica, o percurso de um gozo – onírico, analítico ou ambos.


Referências
COSTA, A. Sonhos. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Ed., 2006.
COUTINHO, A. Sonhos, angústia e alienação. Reverso, Belo Horizonte, v. 31, n. 58, p. 53-62, set. 2009. Disponível em <http://pepsic.bvsalud.org/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S0102-73952009000200006&lng=pt&nrm=iso> Acesso em 24 ago.  2019.
FREUD, S. A interpretação dos sonhos. (Edição Comemorativa 100 anos) Rio de Janeiro: Imago, 2001. (Originalmente publicado em 1900)
FREUD, S.; FLIESS, W. A correspondência completa de Sigmund Freud para Wilhelm Fliess.  MASSON, J. M. (org.), Rio de Janeiro: Imago, 1986. (Originalmente publicado em 1899).
LACAN, J. A instância da letra no inconsciente ou a razão desde Freud. In: Escritos, Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 1998. (Originalmente publicado em 1957).
LACAN, J. O Seminário, livro 11: os quatro conceitos fundamentais da psicanálise. Rio de Janeiro: J. Zahar Editor, 1998. (Originalmente publicado em 1964).
LACAN, J. Une pratique de bavardage. In: Ornicar?, 19, Paris: Lyse, 1977.
LACAN, J. O seminário, livro 17: O avesso da psicanálise. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 1992.
LACAN, J. Escritos. Rio de Janeiro, Jorge Zahar, 1998.
QUINET, A.; ALBERTI, S. Argumento do VII Encontro Interacional da IF-EPFCL. Rio de Janeiro, 2012. Disponível em: <https://www.champlacanien.net/public/docu/4/rdv2012Argument.pdf> Acesso em 24 jul. 2019.

[1]Do alemão, caminho, como propõe Freud sobre o decurso de uma análise.
[2]Prefixo referente através de; por entre.
[3]Menção ao título do texto de Freud, originalmente publicado em 1914.
[4] É a denominação dada ao “agente” que cobra para atravessar emigrantes de forma ilegal.
Back To Top