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Suicídio e kakon como ódio de si

Thaïs Moraes Correia[*]

 

Só o monstro é original na morte.
Heitor arrastado por Aquiles diante dos muros de Troia
não é a morte.
A morte de Ofélia não é a morte.
O suicídio ritual de Mishima não é a morte.
Torquato Neto.
Francesca Woodman.
O tiro de Hemingway na própria boca
talvez seja a morte.
Só o monstro é original na morte.
Todo tumor é parecido.
Todo coração enfarta igual.
O atropelamento é do asfalto.
A bala perdida é do metal.
(Victor Heringer, 2018)
Frida Kahlo “The medical art”
Frida Kahlo “The medical art”

Este artigo circunscreve o tema do suicídio, trama delicada e encoberta por véus que se tornou recorrente entre adolescentes na contemporaneidade. Hoje, com a queda do falocentrismo e seu feroz retorno totalitário presente nas mídias eletrônicas e nas empresas que compõem a GAFAM, entendemos que uma questão pode estar relacionada à outra.

Vivemos em um momento em que os tratamentos psíquicos desembocam numa clínica geral da depressão. Não podemos deixar de nos apoiar na definição que Lacan dá sobre a tristeza como rejeição do inconsciente, ou como “doença” do ideal. Fala-se até de uma euforia da depressão para aludir ao fato de a depressão estar em todos os lugares: nos consultórios, nos congressos internacionais, nas revistas semanais, nas publicações especializadas – enfim, todos falam dela. Cito Nicéas de anotações minhas “a depressão vem sendo anunciada como a expressão mais presente do mal-estar da civilização”.

É importante vermos a diferença clínica entre os estados psicóticos desencadeados sob forma de melancolia e os estados chamados de melancolização neurótica, posto que a passagem ao ato advém do que não foi simbolizado. Em qualquer uma das estruturas.

Consideramos que

Na psicose há a percepção de um objeto mal: kakon para os gregos e, consequentemente, um empuxe a golpear (a si mesmo ou ao outro). Quando o psicótico golpeia o outro, golpeia o kakon que está no mais íntimo dele. Para ilustrar esse “golpe”, tomemos da mitologia grega a relação de Medeia e Jasão. Esta, para ferir o marido que a traíra, trama a morte de seus próprios filhos. Medeia é severamente repudiada pelos gregos. Ela tenta negociar sua partida para Atenas e trama a morte dos filhos, e tudo acontece segundo seus caprichos. Jasão e Medeia se embatem na fatalidade e ela possui um único trunfo: pode fugir ou dizer que é neta do Sol – refúgio no delírio (CORREIA, 2010).

É esse kakon, ódio de si, que está presente no coração do suicida quando este golpeia a si mesmo, saindo fora da vida, desistindo de suportar a inconsistência do corpo falante.

Nada mais tabu do que se falar sobre a morte, ainda mais o suicídio em que o sujeito falante não reconhece mais nenhum apelo, e a dor de existir se esvai no silêncio, de quem não reconhece mais o apaziguador Outro e desiste em ato no seu corpo. Localizamos o suicídio no registro da ação, como passagem ao ato.  Isso dirá da posição do sujeito frente à falta. No caso do suicídio, há uma volta brutal àquela primeira falta que constitui o fato de termos nascidos mortais, isto é, há a vida, mas com a vida há a morte. O suicídio estaria ao lado da morte do desejo. Lacan (2005) nos lembra que “quando se contradiz o ideal, quando ele desmorona, é o que se constata: o poder do desejo desaparece em Hamlet”.

No mundo contemporâneo repleto de fake news, não estaríamos na ordem de um gozo opaco, ao largo do desejo? Segundo M. Bassols, a bússola lacaniana do real coloca a singularidade no sujeito do gozo e na opacidade do ser.

Há pessoas às quais o mundo virtual torna possível viver sua existência, mantendo-se protegidas de um encontro real. Dentro do virtual, há o encontro com o real. Vive-se a sexualidade na internet como tempo de namorar, via pulsão escópica. É lá, também, que existem os grupos das “Margaridas”, onde jovens que pensam em se matar se encontram, ou onde o suicídio ocorre de forma brutal na deep web sob a visão dos hackers e em tempo real.

Seria a passagem ao ato uma ode ao silêncio? Quando Lacan comenta o quadro de Munch, “O grito”, para realçar o silêncio ligado ao objeto pulsional, pensa que o silêncio é aquilo que se sucede ao grito, este então brota exatamente em “escapar do grito”. Isso equivale a dizer que o silêncio vem sempre depois, segundo nos ensina Esperanza (2008, p. 320).

Existem suicídios que não são absolutamente decididos e outros são; nesse caso existe apenas uma coisa para o sujeito: é sair do corpo, ir-se embora, deixar o corpo. No caso do suicida, há uma superposição de duas faltas: a falta do sujeito e a falta do Outro. Além da falta originária, há a falta do Outro enquanto desejante, constituindo-se como nova falta que é a falta de desejo atual do sujeito.

Em Lacan (2005, p. 129), no Seminário 10, encontramos:

Esse largar de mão é o correlato essencial da passagem ao ato. Resta ainda precisar de que lado ele é visto. Ele é visto justamente do lado do sujeito (…) O momento da passagem ao ato é do embaraço maior do sujeito, com o acréscimo comportamental da emoção como distúrbio do movimento. É então que, do lugar em que se encontra – ou seja, do lugar da cena em que, como sujeito fundamentalmente historizado, só ele pode manter-se em seu status de sujeito -, ele se precipita e despenca fora da cena”

Concluiremos dizendo que o sintoma é da ordem de um dizer, a fantasia da ordem do fazer e a passagem ao ato, o suicídio, uma ação. Acerca da identificação, já falada por Freud, é também o objeto a, a qual o suicida tenta “pegar pelo rabo”, pois “não é do mundo externo que sentimos falta, como há quem o expresse impropriamente, mas de nós mesmos”, como nos recorda Lacan no Seminário X. A angústia é, segundo Lacan, algo que não engana. O suicídio é visto como um ato que retira essa certeza da angústia e passa a ser o ato que não engana. A análise poderia ser definida como o lugar onde “aqui não se age” – pois o agir está em suspenso, o que não impede, às vezes, de ver o paciente agir, até mesmo fazer uma passagem ao ato.


Referências
CORREIA, Thaïs M. Casos raros: as psicoses ordinárias na clínica do delírio generalizado. Opção Lacaniana. Ano I, nº 3, dezembro. 2010 em: http://www.opcaolacaniana.com.br/nranterior/numero3/index.html. Acesso em: 20 jun. 2019.
ESPERANZA, G. A força do silêncio. In: Scilicet. Os objetos “a” na experiência psicanalítica. AMP. RJ: Contra Capa, 2008.
LACAN, J. O Seminário, 10: RJ: J. Zahar, 2005.
[*] Profª. adjunta IV – UFMA.
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