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2020 – O despertar de um sonho

Joe Webb - Selected collages - Down The Drain
Joe Webb – Selected collages – Down The Drain
Tania Porto
Associada ao Instituto de Psicanálise da Bahia

2020, número redondo, bonito, que em sua interessante repetição suscitou em nós, sonhadores, fantasias de tempos melhores, apesar de alguns sinais em contrário. Não poucos…

Aqui estamos em 2020. Ano que entrará para a história, sem dúvida, não por confirmar os nossos mais dourados sonhos, mas por nos lançar em um incrível pesadelo.

Interessante, como a psicanálise vinha no decorrer do ano de 2019, falando muito sobre sonhos e pesadelos. E nos falava, justamente do pesadelo, como algo que nos desperta, ainda que fugazmente, para o insuportável real em cada um de nós.  Nos diz Miller: “O despertar que intervém no pesadelo ocorre quando nos deparamos com algo que nos produz horror, do qual não querermos saber mais nada, até o ponto em que despertamos para, como o diz Lacan, continuar sonhando com os olhos abertos” (MILLER, 2012, p. 262).

Tem sido recorrente ouvirmos a expressão, sensação de pesadelo, para descrever o sentimento das pessoas com relação a 2020. Pensamos então, que é como se há algum tempo, a humanidade estivesse dormindo, mais ou menos imersa em um sonho fantástico. Nesse sonho, todas as faltas eram possíveis de serem preenchidas, todos os desejos passíveis de realização. Objetos de desejo acessíveis em prateleiras, plataformas ou sites, fossem esses objetos carros, viagens, filhos ou uma nova aparência… Se não dava para ser à vista, a crédito, por que não?

Até o velho e impossível sonho de contornar a morte, de certa forma, parecia mais perto, talvez até viável, com as novas e admiráveis conquistas da ciência. A longevidade se impondo com as ofertas de novos tratamentos preventivos para a velhice: suplementos, cirurgias, ou, em último caso, a criogenia…

Entretanto, nos diz Lacan no Seminário 24: “O despertar é o real sob seu aspecto do impossível, que não se escreve senão à força ou pela força”. (LACAN, 1976, p.36). Veio, então, a pandemia, nos despertando desse sonhar que, felizmente para uns, infelizmente para outros, parece ter acabado. Não é possível afinal, comprar tudo o que falta, viver plenamente satisfeito, controlar a morte, ou mesmo a vida. O pesadelo da pandemia nos colocou, de novo, de cara com o desamparo, a morte, a falta. Tivemos que nos perguntar: o que é  essencial, o que de fato nos importa, o que realmente desejamos? E os psicanalistas se perguntaram mais, ainda: “É o real impossível de se pensar, se não cessa de se escrever?” (LACAN, 1976, p. 38)

Para alguns, com mais sorte, a pandemia fez um corte, com efeito de interpretação. Uma espécie de ato analítico sem analista, feito por um vírus, numa época em que o Outro não existe. É saber fazer, aí. A que concerne essa época em que o Outro não existe? De acordo com Miller, em A fuga do sentido, falamos aqui, justamente, de uma das equivalências do objeto a ao longo do ensino de Lacan. Afirma Miller: “Esta equivalência, põe em questão a categoria do Outro com maiúscula, pois formula que o Outro pode ser considerado como equivalente do objeto a: A=a”. (MILLER, 2012, p. 223).

Já dissemos que para alguns, foi possível algum efeito de interpretação diante do acontecimento da pandemia, que fez uma espécie de corte no automaton. Para outros, contudo, não foi possível interpretação alguma, só trauma. De fato, a contingência do novo corona vírus tem se configurado como um acontecimento traumático para a humanidade, que parece perdida, ao não encontrar palavras para traduzi-lo.

Para aqueles que não acreditam muito em tudo isso, que acham que nada vai mudar, lembramos que Freud já nos alertou para o fato de que a operação do trauma se configura em dois tempos, um antes e um depois. Virá, ainda, o só depois.

Podemos nos perguntar, então: o ano de 2020 inaugura, mesmo, novos tempos? A partir desse encontro (sempre faltoso) com o real, surgido como efeito da pandemia, poderemos inventar um significante novo?


Referências
FREUD, S. (1895). A primeira mentira histérica. Projeto para uma psicologia científica. Em: Obras Completas. Rio de Janeiro: Ed. Imago, 1987.
LACAN, J. (1964). O Seminário, livro 11: Os quatro conceitos fundamentais da psicanálise. Rio de Janeiro. Ed Zahar, 1985.
LACAN, J. O Seminário, livro 24: O insucesso de um-equívoco é o amor. 1976/1977. Inédito.
MILLER, J-.A. La fuga del sentido. Buenos Aires. Ed. Paidos, 2012.
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