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(Autor)retrato, um impossível de representar1

Joe Webb - Selected collages - Papering over the cracks
Joe Webb – Selected collages – Papering over the cracks
Aléssia Silva Fontenelle
Membro da Escola Brasileira de Psicanálise e da Associação Mundial de Psicanálise.

A fotografia surge no início do século XIX e, com ela, a democratização do acesso às imagens. Em 1854, patenteado pelo fotógrafo francês André Adolphe Eugène Disdéri, surge a carte de visite, nome dado a um antigo formato de apresentação de fotografias que exibia oito pequenos retratos em uma só placa. Essa técnica amplia a prática fotográfica para uma dimensão de larga produção comercial e, não por acaso, o retrato humano foi o gênero que alcançou a maior demanda, desde o seu surgimento. De acordo com Benjamin (2014), o peso absoluto do valor de exposição da fotografia vai se sobrepondo ao valor de culto que se mantinha em segredo na arte, mas isso não ocorre sem resistência. De fato, a recordação de entes queridos, ausentes ou falecidos, foi o último refúgio do valor de culto da imagem.

A artista Frida Kahlo e seu marido, o muralista Diego Rivera, eram adeptos dessa prática, trocando e colecionando retratos de amigos próximos e pessoas de renome que admiravam ou difamavam, tais como Stálin, Lênin, Porfirio Díaz, Zapata, André Breton, Marcel Duchamp, entre tantos outros. Ela dizia que os retratos eram uma forma de “tê-los perto” e de se fazer presente em suas vidas. Assim, os distribuía a um contingente enorme de pessoas e, entre tantas, podemos destacar Leo Eloesser, seu médico em São Francisco, a quem entregou mais de quatrocentas fotografias para que as resguardasse (OLES, 2010).

Numa arte da memória, Frida guarda os testemunhos visuais de sua pré e pós-história e, para tanto, registra no verso das fotografias: nomes, datas[2], recados, marcas de batom com os seus lábios, contas. Apesar de algumas fotografias revelarem seus breves relacionamentos e duradouros amores, elas nunca eram eróticas, podendo ser definidas mais precisamente como um registro de corpos (OLES, 2010). Algumas se apresentam cortadas, outras rasgadas, mas como em qualquer coleção, elas preservam murmúrios de alegrias, fragmentos de desamor, ou melhor dizendo, preservam insignificantes detalhes de uma história.

A esse propósito, apresenta-se a questão: o que motiva uma coleção? O colecionador não é apenas um sujeito que, em um ato deliberado, organiza, agrupa um amontoado de objetos. Essa prática não envolve o objeto apenas como elemento da coleção, mas sobretudo como “motor e verdade” (WAJCMAN, 2010, p. 35).  Assim, o que funda uma coleção é a dimensão do desejo e, nesse sentido, todas elas são criação de desejo. De acordo com Wajcman (2010), para que possa ser nomeada como tal, deve apresentar um kit mínimo formado por objeto + desejo. Nessa lógica, podemos afirmar que uma coleção é algo que se sustenta do vazio.

Curiosamente, encontramos nos arquivos do museu Casa Azul mais de 6 mil imagens[3], ou seja, cartas, documentos, desenhos, cerâmicas populares, roupas, uma coleção ex-votos, remédios, lembranças efêmeras, retratos públicos “oficiais”, instantâneos informais privados e diversas outras fotografias reunidas e conservadas até sua morte em 1954 (MONASTERIO, 2010; OLES, 2010). Entre tantas coisas, foi descoberta a coleção de autorretratos, uma espécie de autobiografia que o pai de Frida, Guilhermo Kahlo, havia tirado ao longo da vida. Essas imagens evocam um rapaz que gostava de posar e exibir o corpo, para a câmara, em poses desafiadoras, até mesmo jocosas, por vezes atléticas, outras, boêmio. Segundo Franger (2010), seu investimento na fotografia teria como objetivo primeiro retratar a si mesmo.

Podemos observar, tanto em Frida, quanto em seu pai, a paixão por se autorretratar, entretanto, uma fotografia nunca pode apresentar o sujeito como tal, sendo sempre um recorte que está grafado em outra coisa. A artista foi retratada ao longo da vida por grandes nomes de sua época: Nickolas Muray, Martin Munkácsi, Fritz Henle, Edward Weston, Gisèle Freund, Pierre Verger, Juan Guzmán, Lola Álvarez Bravo, Manuel Álvarez Bravo, entre tantos outros. Sobre sua relação com a câmera e seu uso no bordeamento do real, afirma: “sabia que o campo de batalha do sofrimento se refletia em meus olhos. Desde então, comecei a olhar diretamente para a lente, sem piscar, sem sorrir, decidida a mostrar que seria uma boa lutadora até o final” (KAHLO apud MONASTERIO, 2010, p.21).

Assim, tem-se a impressão de que, além das pinturas, desenhos e escritos através dos quais Frida constrói uma imagem de si, ela também o faz por meio de um conjunto de retratos fotográficos. Didi-Huberman (2015) ressalta que, se por um lado a fotografia põe corpos em cena, por outro aponta para “o enigma de um jazer do corpo inteligível” (p. 95). Isto porque apresenta um “modelo” dissociado, cindido e, sobretudo, nos remete a uma temporalidade alternante, variante entre avançar para o futuro, rememorar o passado e uma falsa expressão do presente.

Na pintura, em particular nos retratos e autorretratos, o duplo se transforma em algo perturbador; ao mesmo tempo em que é a imagem de seu criador, esta já se fez outra, uma imagem próxima, ao mesmo tempo distante e distinta, que adquiriu uma nova dimensão para se converter num corpo composto. O duplo nos recorda que o ser do homem pode se desdobrar em dois, ainda que para isso precise recorrer ao artifício da arte (RICO, 2004, p.111).

Retratista, retratada… de quem é, a rigor, um rosto fotografado? Esse enigma se evidencia na experiência estética da artista Frida Kahlo e o uso singular que faz do autorretrato, cerca de quarenta em meio a mais de 200 telas. Em sua pintura-espelho, por vezes encontramos sua imagem duplicada, ou mesmo triplicada, como por exemplo, na fotografia realizada por Nickolas Muray em 1939, na qual a artista, ante seu cavalete, pinta o célebre autorretrato Las duas Fridas. O jogo de reflexos expõe imagens, multiplica, repete a transmissão e, através dessa brincadeira, inventa três Fridas. Uma produção peculiar do duplo? Um tríplice autorretrato? Uma disjunção entre ver, ver-se, ser visto? Aqui, duas referências importantes, olhar e tempo, se enunciam nessa mistura do autorretrato com o retrato.

Figura 1. Fotografia da Frida pintando Las dos Fridas, Coyoacán, 1939[4].

A pintura foi realizada logo após seu divórcio com Diego Rivera, e nela observamos duas Fridas gêmeas, de mãos dadas, sentadas uma ao lado da outra em um banco. A que se encontra à direita veste um traje tehuana, a outra um vestido de casamento similar ao de sua própria mãe. Os corações estão expostos e uma artéria comum os une. A artéria aparece cortada, vertendo sangue sobre o vestido branco, e a imagem esquerda, por sua vez, tem uma tigela nas mãos. A pintora esclarece, ao amigo MacKinley Helm, que a Frida da direita seria aquela que é amada por Diego e porta nas mãos um camafeu com o retrato em miniatura dele, do qual sai uma artéria que a nutre e a mantém viva. A da esquerda, Diego já não a ama mais, está se esvaindo em sangue, morrendo lentamente (GRIMBERG, 2004).

O retrato não pode nos ver, entretanto, um ou outro pode despertar a inquietante sensação de que somos observados por ele, que nos olha, nos fascina, convoca nosso olhar. Tal efeito perturbador avança para o campo do enigmático, do inominável e, portanto, comporta uma dimensão traumática. Lacan se opõe a aplicar a psicanálise à arte, ou mesmo a entrar no domínio da psicologia do artista, mas isso não o impediu de tratar a obra como um espaço que organiza uma gramática do desejo. Atento ao que a arte faz avançar a psicanálise, insiste que o criador, assim como o analista, exercem ambos a prática do saber fazer com o singular.

Nessa direção, a obra de Frida Kahlo testemunha a estranha relação que se estabelece entre a pintora e a imagem do corpo devastado. Numa linguagem única, sua arte recorre à imagem do corpo, sua estrutura interna, anatomia ou mesmo os próprios pensamentos para inscrever algo sobre o fluxo de sua existência, desejos, obsessões, vida e morte.

Com efeito, os inúmeros autorretratos em que ela obstinadamente se pintou no espelho permitem apreender algo sobre os modos como se desembaraça e/ou se embaraça com sua imagem. De modo inédito, o drama de sua existência e a série de seus autorretratos fazem do trabalho criativo uma incansável “inscrição de seu corpo, sobre o seu corpo“ (LAURENT, 2016, p.169). Podemos sustentar, portanto, que sua arte circunscreve algo que não cessa de não se representar ou se traduzir.


Referências
BENJAMIN, W. A obra de arte na época de sua reprodutibilidade técnica. 2 ed. Porto Alegre: Zouk, 2014.
DIDI-HUBERMAN, G. Invenção da histeria. Rio de Janeiro: Contraponto, 2015.
FRANGER, G. O pai misterioso. In P. O. Monasterio (Ed.), Frida Kalho: suas fotos. São Paulo: Cosac Naify, 2010
GRIMBERG, S. Nunca te olvidaré… De Frida Kahlo para Nickolas Muray. México: Editorial RM, 2004.
LAURENT, É. O avesso da biopolítica: uma escrita para o gozo. Rio de Janeiro: Contra Capa, 2016.
MONASTERIO, P. (org. . V. autores. Frida kahlo: suas fotos (Cosac Naif). São Paulo: Martins Fontes – selo Martins, 2010.
OLOES, J. Mexericos em prata sobre gelatina. In P. (org. . V. autores Monasterio (Ed.), Frida Kahlo: suas fotos. São Paulo: Cosac Naify, 2010.
RICO, A.  Frida Kahlo: fantasia de un cuerpo herido. 3 ed. Cuidad de Mexico: Plaza y Valdés, 2004.
WAJCMAN, G. Colección seguido de La avaricia. Buenos Aires: Manantial, 2010.

[1] O texto faz parte da tese de doutorado, A arte de Frida Kahlo: o savoir-y-faire com as peças soltas, pela Universidade Federal do Rio de Janeiro.
[2] Algumas datas estão riscadas e/ou alteradas, no intuito de subtrair três anos de sua idade.
[3] Algumas datam do século XIX.
[4] Nickolas Muray e Kahlo estavam no auge de sua relação de dez anos quando esta foto foi tirada. O caso amoroso começou em 1931, pouco depois do casamento de Kahlo com o muralista Diego Rivera, terminando em 1941. Eles permaneceram amigos até a morte da artista em 1954.
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