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Mulheres e discursos

Eugenia Loli - Concurrent Streams - 2017
Eugenia Loli – Concurrent Streams – 2017
Bruna do Vale
Associada do Instituto de Psicanálise da Bahia (IPB)

A mulher é algo que faz questão, um enigma em suas diversas faces, contadas uma a uma. Por assim se fazer, coloca em cheque o universal, destacando a singularidade e a subjetividade de cada falasser. Com sutileza, Marie-Hélène Brousse(2019), no livro Mulheres e discursos, nos apresenta esse mundo por meio de diversos significantes que marcam os discursos da época.

Como exemplo, temos atualmente a presença de lutas feministas, antirracistas etc., que, mesmo sendo essenciais, acabam por definir corpos. Trazem consigo, muitas vezes, a dureza de uma ordem que estabelece quem fica e quem sai, quem está dentro e quem está fora, com objetivo de incluir todos os corpos em um universo só, fala-se de igualdade, mas marca-se uma diferença. São discursos, constituem um modo de gozo articulado a uma sociedade. A eles atribuímos sentido de castração ligados à uma ordem simbólica (BROUSSE, 2019).

Se trago isso é para pontuar que o feminino tratado na psicanálise aponta para a direção da ex-sistência do mundo do discurso. “Ele está fora do mundo do discurso. Expulso do sentido fálico, expulso do –φ, não responde muito bem à unidade da castração” (BROUSSE, 2019, p. 31). Entretanto, os discursos, que se apresentam com significantes mestre na atualidade, deixam marcado esse ponto fora da ordem que aparece como o que resta, que faz furo mesmo que permita a construção de um semblante de identidade.

Isso é interessante e, ao mesmo tempo, confuso. Ao apontar a possível existência de diversos sujeitos, apresenta uma pluralização das identificações, mas recai numa infinita divisão das massas, ou seja, os sujeitos acabam por se identificar a significantes-mestres que os reduzem a dados cifrados, tornando-se ferramenta que o discurso capitalista acaba por fazer uso. Assim, “A multiplicidade de identificações não modifica em nada seu modo de funcionamento. Elas permanecem no Outro” (BROUSSE, 2019, p. 72) e não ao lado do sujeito. Dessa forma, Brousse vai elencando as formas como os significantes-mestres vão se colocando na atualidade com o que ainda permanece como esse Outro ordenador e com o que do corpo feminino faz função de Nome-do-Pai, esse como efeito de simbólico no real.

O que quero dizer com isso? Que o nome-do-pai, como função simbólica, faz furo. E o que esse furo quer dizer? Trata-se de um furo de nomeação, e por isso ele fabrica um sentido. A metáfora paterna efetua um Um entre o pai e a mãe dos supostos homens e mulheres. Isso produz um inconsciente que ex-siste ao corpo, que não tem relação com o corpo, que faz dele um puro ser de discurso, no qual o corpo feminino entra em função. Função de quê? De mãe, de mulher, de irmã, de filha… Além disso, qualquer outra função é ligada a isso (BROUSSE, 2019, p. 30).

Assim, isso que faz função implica nas identidades, que estão ligadas ao reconhecimento dado pelo Outro, perpassando a significantização do corpo (LACAN, 1954/1992). Significantes como identidade, gênero, minorias, por exemplo, designam a indefinição de um todo por apresentarem a ineficácia do sistema binário, não há só duas definições, entre o zero e o um há um infinito (LACAN, 1972-73/1985). Multiplica-se os significantes-mestres e, consequentemente, a segregação, a qual traz uma lógica de apropriação e desapropriação própria do capitalismo, troca-se o sujeito dividido pelo sujeito da ciência (BROUSSE, 2019).

Para responder a isso, a psicanálise vai pela via da subversão, do gozo pelo desejo, o que implica passar de uma lógica da identidade, em que vários podem se identificar a uma coisa/traço/pessoa, para uma lógica da posição de gozo, que é do Um, passa-se de um processo simbólico para um processo real (BROUSSE, 2019). Tratar disso parece implicar impasses que o próprio desconhecido oferece. É se deparar com a falta de palavras, a ausência de significantização.

É isso que Brousse propõe desenvolver ao longo do livro, apresentando os discursos do mestre que aparecem e indicando como o feminino os atravessa com a pretensão de indicar possíveis direções de tratamento. Como já cantava Caetano (1991): “alguma coisa está fora da ordem”, é justamente isso que faz interesse para a psicanálise, por dar acesso a uma feminização em meio a um discurso viril, colocando-o ao avesso e levando-a à posição de ficção.


Referências
BROUSSE, M. H. Mulheres e discursos. Rio de janeiro: Contra capa, 2019.
LACAN, J. (1954). O seminário, livro II: o eu na teoria de Freud e na técnica psicanalítica. Rio de Janeiro: Zahar, 1992
LACAN, J. (1972-73). O seminário, livro XX: mais, ainda. Rio de Janeiro: Zahar, 1985
VELOSO, C. Fora da ordem. Rio de janeiro, 1991.
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