Rogério Barros (Editor) Pandemia! Covid-19! Um stop no mundo organizado pela nossa realidade fantasiada, e…
No meio da pandemia tinha um analista
Bruno de Oliveira
Associado ao IPB
No meio do caminho tinha uma pedra
Tinha uma pedra no meio do caminho
Tinha uma pedra
No meio do caminho tinha uma pedra
Nunca me esquecerei desse acontecimento
Na vida de minhas retinas tão fatigadas
Nunca me esquecerei que no meio do caminho
Tinha uma pedra
Tinha uma pedra no meio do caminho
No meio do caminho tinha uma pedra
Carlos Drummond de Andrade
Foi na XVII Jornada de Psicanálise da EBP-BA que Pierre Skriabine, ao narrar um pouco dos bastidores de suas sessões com Lacan, colocou a questão da presença do analista com toda a opacidade de sua dimensão. Contou que, certa vez, enquanto aguardava sua sessão com Lacan, se deu conta, não sem angustia, que o mesmo faltara. Desnorteado, Skriabine precisou encarar o desaparecimento desolador da imagem do seu analista cujo intrigante efeito foi decisivo no decorrer da sua análise. Como a não-presença de Lacan possibilitaria um efeito de análise?
Em seu texto Presença do analista. Não sem o corpo…, Christiane Alberti (2000), AME, Membro da ECF e da Associação Mundial de Psicanálise – AMP, parte do princípio de que a clínica pode ser definida como um encontro de corpos. Ressalta que a presença do analista é um efeito de que não se basta pelo corpo, contudo não se é possível sem este. Não é uma concepção de fácil entendimento, pontua Alberti, pois a presença do analista seria um pedaço de real que não se submete ao significante, preservando seu traço inarticulável, mas que possibilita a instalação da rede simbólica, cadeia de significantes. A presença opaca e enigmática do analista é, para o analisante, uma verdadeira pedra no meio do caminho, como diria Drummond ou, em termos lacanianos, um corpo real no coração do simbólico.
São por essas coordenadas que o relato de Skriabine parece se enveredar: na sessão seguinte, relatou a Lacan como foi desolador lidar com a não-presença dele. Ao fim da sessão, Lacan cobra a sessão que ele mesmo tinha faltado, embaraçando ainda mais a situação. Afinal, como cobrar por uma sessão sem o analista? Muito a contragosto, Skriabine paga a sessão, produzindo uma questão crucial, apreensível no só-depois: “que demanda dirijo a um Outro que falta?”
É justo nesse Outro a quem o sujeito dirige sua demanda, que Lacan convida o analista a intervir, fazendo surgir a dimensão real e enigmática da presença do analista. Enigmática porque há nesse Outro uma incógnita silenciosa que, segundo Alberti, se presentifica como o x da questão do desejo, onde o sujeito, sob transferência, é convocado a tecer um discurso sobre os significantes de sua própria demanda. Como coloca a autora, “há um osso real para o amor de transferência, é a presença do analista” (p. 56).
É esse osso real, opaco, ou, como coloca Drummond, essa pedra, que Lacan faz surgir, no meio do caminho de um Skriabine perplexo, quando demarca a falta do Outro a partir da ausência da incorporação imaginária do analista. A imagem cai e provoca um desvio do eixo imaginário em direção ao real que convoca o sujeito a falar. Aliás, é bem pertinente propor que é justo este ponto de opacidade, livre do significante, que demarca o caminho. Só há caminho porque há uma pedra.
Diante disso, é importante questionar a dimensão da presença do analista frente à atual conjectura pandêmica. O avanço viral põe em cheque a experiência analítica ao propor um distanciamento dos corpos, reduzindo o dispositivo da sessão analítica à meras imagens na tela? De que presença se trata na modalidade on-line? Seria a experiência analítica mais uma dentre tantas outras vítimas do covid19?
É inegável que a modalidade on-line, impulsionada pelo avanço implacável do vírus, coloca seus impasses tal como uma pedra no meio do caminho, mas vale lembrar que Freud, como bem resgata Alberti, ensina a fazer do obstáculo um instrumento para análise. Lacan (1964/ 1988) também nos orienta, no seminário 11, que a presença do analista não se reduz à sua pessoa, pois ela é, antes de tudo, uma manifestação do inconsciente, que por sua vez é a “soma dos efeitos da fala, sobre um sujeito, nesse nível em que o sujeito se constitui pelos efeitos do significante” (p. 122). Pelo visto o vírus veio para por isto à prova.
O desafio na atual conjectura pandêmica talvez seja apreender o que seria um esboço de uma análise on-line ao lidar justamente com a falta da imagem convencional de analista e analisando no consultório e se deparar com o que há de real na transferência: a iminência da morte imposta pelo vírus nos mantém ilhados cada um com sua tela e nos desafia a inventar uma forma de escutar um sujeito que insiste através dos chiados e ecos das conexões, que se articula e desarticula com as quedas da internet ou se assusta com sua própria imagem na tela.
Engana-se quem encara a pedra de Drummond ou o sumiço da imagem de Lacan para Skriabine como aquilo que faz obstáculo à fala. Miller em O Osso de uma análise (1998) é categórico ao interpretar Drummond quando diz que “é pelo caminho que a pedra existe, mas é também pela pedra que o caminho existe” (p. 31) e o mesmo pode ser dito de um percurso de análise. É por existir uma pedra, um analista, esse pedaço de real; essa presença da ausência que um caminho pode advir. Não recuemos.