Rogério Barros (Editor) Pandemia! Covid-19! Um stop no mundo organizado pela nossa realidade fantasiada, e…
O abismo do desejo, um antídoto para a pandemia
Graziela Vasconcelos
Aluna do curso Teoria da Psicanálise de Orientação Lacaniana. Associada do Instituto de Psicanálise da Bahia.
A época em que vivemos é pandêmica, povoada por sintomas os mais diversos. Um mundo tomado por um vírus, que se nos impõe abruptamente um horror inassimilável. É frente a irrupção desse estranho infamiliar que o sujeito se paralisa, se desorganiza e parece experimentar com mais frequência o afeto da angústia. Lacan (1962/2005) vai nos dizer que a angústia emerge quando falta a falta e o objeto que deveria permanecer oculto, se apresenta. Parece que é disso que se trata o encontro com a Covid-19.
Freud (1916/2014), em seu percurso inicial à cerca da angústia, propõe o recalque como sua causa, como aquilo que, por impedir uma descarga de excitação, faria irromper a angústia. Já em 1926, em Inibição, sintoma e angústia, ele faz uma crítica à sua proposição inicial e admite ser a angústia a causadora do recalque. Esta fora a segunda teoria freudiana da angústia. Ainda em Inibição, sintoma e angústia, Freud vai propor a angústia enquanto angústia de castração, que porá em ação o recalque e dirá então da inexistência de objeto na angústia.
Lacan, no Seminário 10, vai se opor a essa noção freudiana da angústia sem objeto e vai dizer que “a angústia não é sem objeto” (LACAN, 1962/2005, p.175). Ainda nesse seminário, ele situará a angústia entre o gozo e o desejo e dirá de um objeto que é ao mesmo tempo objeto da angústia e do desejo, o objeto a. Sendo objeto da angústia, o sujeito engendrará as mais insondáveis estratégias para mantê-lo sempre à distância. Importa notar que ao assim proceder o sujeito mantém também o desejo inacessível, ele guarda distância daquilo que seria capaz de dar um tratamento à sua angústia. Ao aproximar-se do desejo o sujeito guarda distância do gozo e ultrapassa a angústia. Lacan (1962/2005) vai nos dizer da angústia enquanto termo intermediário entre o gozo e o desejo e que é ultrapassada a angústia que o desejo se constitui.
Façamos um pequeno percurso na constituição do sujeito neurótico em sua articulação com o desejo, para compreendermos do que se trata a posição desse sujeito frente ao que ele considera um abismo, o próprio desejo.
A experiência do desejo, para todo sujeito neurótico, se dá, antes de tudo, por meio do Outro. O Outro, evocado pelo sujeito por meio da pergunta Che vuoi? que lhe é dirigida, é aquele que pode dar ao sujeito a resposta ao seu apelo. É aí, neste lugar de onde o sujeito lança a pergunta, que ele tem com o desejo seu primeiro encontro, “o desejo como algo que é, primeiro, o desejo do Outro” (LACAN, 1958/2016, p. 24).
O desejo do Outro é enigmático, opaco e o sujeito, por sua ausência de recursos, se vê ante ele em total desamparo. É por meio da experiência especular, ou seja, da relação entre o eu e a imagem do outro como fundadora da Urbild do eu, que se constitui em elemento imaginário, que o sujeito pode fazer frente ao desamparo da sua relação com o desejo do Outro. Para isso, é necessária a constituição da fantasia, como lugar por meio do qual o desejo poderá se situar. “A função da fantasia é dar ao desejo do sujeito seu nível de acomodação, de situação” (LACAN, 1958/2016, p. 28).
Em seu primeiro ensino, Lacan apresenta o matema da fantasia ($ ◊ a), sujeito dividido, atravessado pela linguagem e mortificado pelo significante, em articulação com o objeto a. Esse matema esclarece o drama de qualquer neurótico, o de saber qual o seu lugar no desejo do Outro e que objeto ele é para esse Outro. Em todo neurótico, “a questão é não se aproximar do objeto da fantasia, na medida em que ele desemboca no desejo do Outro” (LACAN, 1958/2016, p. 457). Em sua relação com o Outro como o lugar da fala, tesouro dos significantes, o sujeito se depara com a falta no nível desse Outro. Aquilo que aí falta seria o que permitiria ao sujeito se designar, causar a si mesmo e é quando o sujeito fraqueja em designar-se, que o objeto a intervém para suportar esse momento, como efeito da castração, objeto da fantasia. Miller vai dizer que se por um lado “o objeto a é a causa do desejo, … em outro aspecto o significante é a causa do objeto a” (MILLER, 2015, p. 85).
Se a questão do neurótico é não se aproximar do desejo do Outro, na neurose obsessiva esse esforço é bastante radical, pois qualquer possibilidade de aproximação do sujeito do desejo do Outro, o colocaria em posição de objeto, submetido a um gozo mortífero que engendraria no obsessivo uma angústia inibidora. A angústia, enquanto afeto que não engana, sinaliza uma perigosa aproximação entre o gozo e o desejo.
As atuais exigências impostas pela tentativa de contenção da propagação do vírus, nos convoca a um modo de vida obsessivo. Lavar as mãos com água e sabão e usar álcool gel e desinfectar as compras e não abraçar e não apertar as mãos do outro e não se aproximar das pessoas e usar máscara e tirar os calçados antes de entrar em casa e lavar as roupas imediatamente após o uso e tomar banho dos pés a cabeça e não sair de casa e … e … . Antes da pandemia, sintomas obsessivos, durante a pandemia, obsessivos em pânico.
O obsessivo é assolado pela questão de ser ou não o objeto que o Outro deseja. Para ele é preciso destruir o objeto que causa o desejo do Outro, no entanto, em sua relação com a mãe, esta sempre o coloca como o objeto substituto, logo é a ele mesmo que o obsessivo ataca e destrói. “Ele advinha a impotência em que se encontra de desejar sem destruir o Outro e, com isso, destruir seu próprio desejo, na medida em que ele é o desejo do Outro” (LACAN, 1966/1998, p. 636). Lachaud nos diz, “a partir do momento em que se afirma o desejo do Outro, o obsessivo desaparece. Ao negá-lo, poderá se afirmar e sustentar assim a permanência e a consistência de seu eu” (LACHAUD, 2007, p. 73).
Para resolver a questão do esvaecimento do seu desejo, o obsessivo o torna proibido. Essa proibição, sustentada na própria proibição do Outro é o que possibilita ao sujeito sustentar o desejo. No entanto, para sustentá-lo é preciso que ele se apresente, ao que Lacan vai dizer, “um desejo proibido nem por isso significa um desejo sufocado” (LACAN, 1957/1999, p. 427). O obsessivo nos permite observar essa lógica em seu modo de funcionamento de uma forma bastante complexa, ao mesmo tempo em que ele mostra seu desejo, ele o interdita. Na neurose obsessiva interditar é sustentar o desejo como impossível. Ao que Lacan esclarece, “Quando digo que o obsessivo sustenta seu desejo como impossível, quero dizer que ele sustenta seu desejo no nível das impossibilidades do desejo” (LACAN, 1962/2005, p. 351).
Já dissemos da problemática da relação de objeto para o obsessivo, “nele toda relação de objeto equivalerá inevitavelmente à relação interditada” (LACHAUD, 2007, p. 99). O objeto de que se trata é correlato do desejo do Outro enquanto exigência de que o sujeito se apague, expressão máxima do gozo. Um gozo que irá colocar em movimento o circuito fechado da compulsão à repetição, que se apresenta nos sintomas. São os meios defensivos do obsessivo que manterão o objeto intocado.
No entanto, o perigoso abismo que o desejo representa para o sujeito, parece ser um caminho possível a ser trilhado na clínica psicanalítica dos dias de hoje. O que vemos são sujeitos submetidos a um gozo Outro, sem respostas para isso que se apresenta como traumático, convocados a se proteger por meio de sintomas obsessivos que se repetem e cujo ciclo só poderia ser rompido por meio do desejo que faz advir o sujeito.