Rogério Barros (Editor) Pandemia! Covid-19! Um stop no mundo organizado pela nossa realidade fantasiada, e…
O analista entre o divã e as telas
Vanessa Serpa Leite
Associada do IPB
Ainda na passagem do século XX para XXI, Miller (1999) dá uma célebre entrevista sobre o uso do divã e a portabilidade do corpo na psicanálise, mediante o aumento dos recursos tecnológicos; questões estas que nos parecem caras no momento atual por conta da pandemia mundial do Covid-19, em que a norma tornou-se o atendimento psicanalítico por meio de tecnologias digitais, via telas de computador e celular que transmitem imagem e voz. Desde o início da urgência do isolamento e afastamento social, analistas e praticantes da psicanálise vem debatendo a diferença da presença do analista em carne e osso na sessão e a presença do analista através da voz e da imagem, onde o objeto divã não está disponível como na cena enquadrada pelo consultório do analista.
Um dos pontos principais trazidos por Miller (1999), a partir das perguntas de Eric Faverau, diz respeito ao verdadeiro objeto da psicanálise, que é o psicanalista, e não o divã. Para Miller, o psicanalista é o objeto que Freud inventou na medida em que ele é capaz de se fazer objeto. Logo, o divã não passa de uma cama onde um corpo se despe de seu formato ativo e imaginário para que o falasser se encontre com o que há de resto. Nessa perspectiva, transmite a ideia de que o divã é um objeto capaz de deixar presente e ao mesmo tempo ausente a relação sexual, na medida em que possibilita o ser falante se entregar totalmente à experiência do encontro com o corpo parasitado pela palavra. Ora, se o divã não é o cerne da experiência analítica, mas sim o analista como objeto, sabemos que é o ato do analista em oferecer ao falasser o lugar de encontro com sua própria estranheza que confere o estatuto da psicanálise.
Miller (1999) esclarece que o divã serve para amputar a motricidade, deixando materializado esse corpo derrotado e abandonado. Em seguida, defende que a presença virtual possibilitada pela tecnologia tropeça na medida em que sabota o real. Ou seja, alerta que a co-presença em carne e osso é necessária apenas para fazer surgir a não relação sexual. Numa sessão, analista e analisante não estão juntos para se ver, e o divã é justamente o objeto que representa isto: deixar surgir a não equivalência. Segue, então, a pergunta: como provocar e sustentar o encontro com o real em modo on-line?
Recentemente, Vieira (2020), em live da SPCRJ intitulada A janela e o vizinho, questiona a possibilidade de provocar o encontro com o estranho nas sessões on-line. Segundo ele, aquilo que causa uma certa estranheza é o próprio da sessão analítica. O psicanalista quer ver o que não está na janela, no enquadre da realidade psíquica, aquilo que não é reconhecido pelo eu. As sessões on-line têm ocorrido normalmente no ambiente familiar, no espaço próprio e íntimo do analisante. Dessa forma, Vieira vai trazer que o encontro interpessoal, ou a baliza entre os corpos, é necessária para contornar a realidade psíquica e então fazer aparecer o que está fora desse enquadre. O que é trazido como “estranho” é o mesmo que Miller já apontava em 1999, quando questionado sobre a presença do divã.
Ainda anteriormente à entrevista dada à Eric Faverau, Miller (1990) discute as mudanças ocasionadas pelo discurso da ciência, com o advento do fax e o uso do telefone. Nesta época, destacou que o fax modificava a relação de proximidade e a relação de vizinhança, ocasionando uma certa aceleração nos atos individuais, enquanto o telefone provocava uma ilusão da presença do outro, como uma falsa presença. Dessa forma, vemos que, desde o início da década de 90, se discutia formas inéditas de presença permitidas pela tecnologia e de que maneira isto afeta as relações humanas, logo, o fazer do analista. Mais além do divã como o verdadeiro objeto da psicanálise, é a presença do analista que está em jogo nesta querela. Presença esta que quanto mais o modo virtual de relação se banaliza, mais a presença real se torna preciosa, nos diz Miller na entrevista dada em 1999.
Para concluir, e muito distante de um ponto final nesta discussão, Miller (1999) considera que o analista é um objeto muito particular, que permite à alguém à se experimentar, como falasser sem saber o que se quer, nem o que se diz, nem mesmo a quem se diz. Diante disso, devemos pensar como manobrar e atuar na falsa presença sem sabotar o real. Não se trata, então, da discussão sobre a ausência do objeto divã, mas sim da busca dos alicerces da prática para fazer incidir a presença do analista mesmo com as modificações que a ciência provoca no encontro entre corpos, inclusive quando esses corpos são afastados e afetados pela invasão de novos e mortíferos agentes biológicos que vêm desvelando o real em cada singularidade de modo inédito na história humana.