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O Outro que segue o impossível de dizer

Eugenia Loli - On the Road to the Akashic Library - 2018
Eugenia Loli – On the Road to the Akashic Library – 2018
Entrevista com Fernanda Otoni Brisset
Membro da Escola Brasileira de Psicanálise e da Associação Mundial de Psicanálise

Equipe Lapsus (EL):

O que a prática analítica on-line, alcançando a subjetividade da época pandêmica, nos ensina sobre os princípios da psicanálise de orientação lacaniana?

Fernanda Otoni

Brisset (FOB):

A pandemia está mudando a rotina do mundo, isto é um fato!

Passamos a experimentar, em tempo real, sem preparo prévio ou manual de instrução, uma desordem dos costumes, instalada em defesa a irrupção viral, que abriu o mundo à uma espécie de mutação do laço social que hoje se faz mergulhado na tecnologia digital.  A humanidade parece atravessar um umbral rumo a uma nova era onde a tela será cada vez mais uma janela do laço desse mundo.

Muitas questões eclodem dessa nova era e alcançam a prática analítica. Quais serão as consequências do que se faz através de conexões on-line, sem a presença dos corpos? O que se perde, o que se alcança? Quais são os limites e as possibilidades?

Tal pergunta também se estende a diversos domínios. Por exemplo, no campo da Educação à Distância (EaD): como transmitir, sem a presença dos corpos, as ressonâncias, ecos, mal-entendidos, chistes, caretas e equívocos que participam do impossível de ensinar? É um debate atual. O home-office substituirá o trabalho presencial? Lembro da provocação de Mario Goldemberg: com a quarentena, o sexo on-line seria um substituto à altura para os celibatários? São perguntas que verificam a função da presença dos corpos sempre que está em jogo a transmissão de um impossível.

Parece que a pandemia nos faz constatar e nos ensina, mais do que antes, de que tem algo que se passa no mundo do falasser que, para acontecer, é necessário uma naca de corpo… uma certa materialidade.

O mundo pandêmico força a psicanálise a se servir dos dispositivos on-line para prosseguir com a prática analítica quando as relações, sob a forma dos corpos em presença, foram suspensas como resposta à nova desordem mundial devido à pandemia COVID-19.  Foi num piscar de olhos a eclipse do instante de ver! Face à exigência sanitária do afastamento houve, em alguns casos e situações clínicas, um deslocamento dos atendimentos presenciais para atendimentos on-line. Mas, quais seriam os limites e o alcance das sessões analíticas na ausência dos corpos físicos do analisante e do analista?

Éric Laurent (2018), na conferência de Barcelona, aponta que “o analista não deve esquecer que não é seu ser que move a operação analítica (p. 55). Citando Lacan (1977/1979), do Seminário 24, sublinha que “aquele que sabe é, na análise, o analisando e o analista entra aí como um Outro que segue (suit) (p. 18)”.  Então, como segui-lo em tempos de pandemia? Como operar para tratar o impossível de suportar que essa situação inédita ativa? Cada caso é um caso é a resposta que salta da língua, mas não basta concluir tão rapidamente.  Cada caso é um caso só e somente se garantirmos na experiência, um por um e em cada sessão, uma prática sem standard, mas não sem princípios, tal como Éric Laurent (2006) soube proferir, tornando evidente o que nossa experiência é testemunha:

A psicanálise é uma prática da fala. Seus dois parceiros são o analista e o analisante, presentes a uma mesma sessão psicanalítica. […] Quando o analisante fala, ele quer, para além do sentido daquilo que diz, alcançar no Outro o parceiro de suas expectativas, crenças e desejos. Ele visa o parceiro de sua fantasia. […] O analista se abstém de agir em nome dessa fantasia. […] O laço da transferência supõe um lugar, o “lugar do Outro”, que como diz Lacan não é regulado por nenhum Outro específico. É aquele no qual o inconsciente pode se manifestar na sua maior liberdade de dizer e, por tanto, de experimentar seus logros e dificuldades. […] A experiência da psicanálise não tem um protocolo técnico, a experiência da psicanálise tem apenas uma regularidade: a da originalidade do cenário através do qual se manifesta a singularidade subjetiva. Não sendo uma técnica se trata de um discurso que encoraja cada um a produzir a sua singularidade, sua exceção (s/p).

Manter esses princípios orientadores do ato analítico é a nossa orientação. A experiência analítica nos ensina que a substância material conectada à linguagem, esse Um[1], se passa quando se fala e é por essa via que falar a um parceiro participa da transmissão de um impossível de dizer. Cabe ao analista garantir a originalidade do cenário para que cada um possa, assim, manifestar sua singularidade subjetiva. O analista está ali como um Outro que segue esse Um que ressona e desliza sob rodinhas segundo a perspectiva do sinthoma de cada um.

EL:

A função do analista como um Outro que segue o esforço de dizer o indizível se modifica face ao uso da tecnologia?

FOB:

Certamente, a função do analista continua sendo a de sempre. Em um mundo Outro que descortina a cada dia o uso de novos recursos, a função do analista continua a ser, mesmo à distância, oferecer-se como uma presença, semblant de objeto, que numa parceria discreta segue o falasser no seu esforço em alçar um saber fazer com sua falta a ser.

Em tempos de pandemia, o que verificamos é que a rotina do mundo que dava abrigo ao real se rompeu. A fantasia de um mundo familiar deu lugar a uma inquietante infamiliaridade que perdura. As referências cotidianas não servem mais de guia, as tabuletas ficaram ilegíveis, e não há como assegurar o que será o amanhã. Nesse cenário, o Outro também sofre mutação. Mais além do Outro que não existe, neste instante, o que concebemos como Outro, a saber o que concebemos como a rotina do mundo, rasga-se, esgarça-se e se mostra, para todos e para cada um, sob a forma do que Lacan como o “Outro rompido” (LAURENT, 2006, p. 56).

As estabilizações ficcionais com as quais cada um erigiu sua defesa e teceu suas amarrações estão perturbadas. A “ordem prévia feita da rotina do discurso pelo qual as significações se mantêm, se evanesce” (MILLER, 2011, s/p). O gozo entra em disrupção. Mais do que nunca, a radicalidade de um Outro rompido eclode desse real e precipita em um trou, um furo, um vazio subjetivo que vibra perturbado pela instabilidade de lalíngua face ao troumatisme[2]. O Outro está rompido e nesse vácuo, “no caminho do real, encontramos o Um, que é o resíduo da desconexão” (MILLER, 2007, p. 154), da ruptura que advém como uma disrupção.

E é justamente nessas situações, tal como podemos ler em Lacan (1977/1979), que a experiência analítica se mostra como um “fazer de verdade” (p. 18), esclarecendo a função do analista. Se, por um lado, a disrupção de gozo coloca em evidência o Outro rompido, por outro lado, o Um do gozo daí desalojado tensiona, força um efeito-sentido. Ele evoca o analista a um fazer de verdade, ou seja, como um Outro que segue o falasser em seu esforço de um fazer novo entre o Um, o furo e seu laço. Instante em que esse impossível de apreender, quiçá, força a passagem mais além do trauma. Força a passagem e esse Um se desliza de ficção a ficção.

A experiência analítica, durante a pandemia, tendo a considerá-la como uma instalação portátil que se oferece como um dispositivo que pode ser acionado, segundo a forma e o tempo de cada um. Em alguns casos, guardar um intervalo pode ser preciso para manter a válvula da inconsistência em funcionamento, lá onde o Outro tende a consistir. Em outros casos, se um cálculo ou por experiência, sabemos que na ausência da sessão analítica uma desamarração se precipita, pois a parceria analítica funciona ali como um fio conector do laço social, o intervalo não pode se prolongar ao infinito. Para alguns outros, informar a suspensão temporária do atendimento e se colocar à disposição pode ser uma forma de estar ao lado, simplesmente, aguardando o uso que o falasser fará do parceiro analista que o segue. Em todo caso, o analisante responde a seu modo à oferta analítica, e o analista o segue o em seu esforço de alçar um dizer, um saber fazer que possa ancorar esse Um que subsiste fora da simbolização.

Nesse universo variável, a clínica das amarrações demonstra sua plasticidade no tratamento do real e orienta o trabalho nesse tempo de desordem. Alguns decidem, ou tentam, de seguir qualquer coisa do trabalho analítico através via conexões telefônicas e audio-visuais, uns chamam intermitentemente, outros aguardam a rotina voltar para retomar as sessões, dentre outras eventualidades que surgem desse inusitado. O mundo mudou, mas o trabalho do sujeito continua sendo o de fazer com o furo que o constitui. A função do analista continua sendo a de instalar sua presença ao seu lado, como um Outro que segue, tão um a um e tão caso a caso, segundo os recursos materiais e, sobretudo, subjetivos do falasser seguindo sua originalidade sinthomática. 

EL:

Como pensar a presença do analista e do seu corpo nas sessões on-line? 

FOB:

Encontro no relato de alguns colegas uma orientação na direção da resposta a esta questão.

Florencia Shanadam, em seu texto Modos de presença, responde assim :

¿Podría haber seguido en la vida si él no me hubiese atendido por teléfono todos los días cuando mi madre y mi hermano murieron inesperadamente? No lo sé. ¿Podría haber ido al encuentro del buen agujero si él no me hubiese atendido por Skype, sosteniendo la mirada en la pantalla, diariamente por más de un mes, durante la travesía por la angustia más radical en el tiempo de la destitución subjetiva que dio paso al final? No lo creo.

Avi Rybnik conta que uma de suas pacientes lhe surpreendeu ao dizer que:

Es más fácil para mí hablar en análisis por teléfono que en la clínica con usted presente. Puedo atreverme a decir cosas que a veces me abstengo de decir en presencia”. En ese momento comprendí que había un problema: ¡es demasiado fácil! Elude algo de lo real, que Freud ya percibió y por ello abandonó la hipnosis.

Com Antônio Di Ciaccia, encontrei ressonância quanto as razões para persistir na oferta analítica, mesmo com o distanciamento dos corpos, posto que há uma aposta contida neste ato. Perguntaram a Di Ciaccia sobre a prática analítica em tempo de coronavírus e ele respondeu:

Traduzo Lacan de quem ainda recordo a voz.  O que tem a ver com minha função de analista pude dizer aqueles que procuraram por mim que, ainda que seja à distância, estou presente. E ele acrescenta: mas ainda tenho que dizer que, mais do que por eles, com frequência eles estão preocupados comigo. Não creio que seja porque sou parte da população preferida do coronavírus, mas porque é isso que caracteriza a transferência: quando o Outro parece estar menos presente o sujeito a ele se agarra mais ainda.

Eis aí a função do analista, sua presença e corpo, mesmo à distância! Será por vias assim que alguma ficção pode vir restaurar um certo saber fazer com esse Outro rompido. Soluções fora do standard se servem de recursos tecnológicos modernos, gambiarras, bem como objetos à moda antiga.

Nessa clínica que se presentifica entre corpos a distância, modular o uso da voz, do olhar como presença real do analista, parceiro de gozo, torna-se primordial. A supressão do encontro entre os corpos não suspende a transferência do Um. Do lado do analista, a oferta segue sem destituir-se do corpo, o que evoca a função do desejo do analista como causa irredutível. Da libra de carne exigida, Lacan (1962-1964/2005) insiste que “convém lembrar que ela é corpo e que somos objetais, o que significa que não somos objetos do desejo senão como corpo” (p. 237).

O que exige do analista um bom uso da heresia para evocar, com seu ato, o que reverbera, a partir desse insondável do ser, a favor de um laço possível e seguindo a política do sinthoma. Se o sinthoma porta a ortodoxia do Um, sempre o mesmo, a heresia está na forma como esse Um se enoda, e o analista é um Outro que segue e diz sim ao modo como cada um enlaça o impossível de apreender ao RSI. É quando a experiência analítica testemunha a vocaçao herética do gozo e, no campo das amarrações, vê ressoar a subversão necessária, mas sempre contingente, a favor do que é, do que há, e insiste.

Sigamos !

Tal aposta analítica é a nossa linha guia.

Oxalá !


Referências
LACAN, J. Le séminaire, livre XXIV: L’insu que sait de l’une bévue s’aile à mourre. Texto estabelecido por J.-A. Miller. Lição de 10 maio de 1977. In: Ornicar?, Paris, Navarin, n. 17-18, p. 18, 1979.
LACAN, J. Le séminaire, livre XXIV: L’insu que sait de l’une bévue s’aile à mourre. Texto estabelecido por J.-A. Miller. Lição de 10 maio de 1977. In : Ornicar?, Paris, Navarin, n. 17-18, p. 18, 1979.
LACAN, J. O seminário, livro 10: A angústia. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Ed., 2005.
LAURENT, É. Disrupção do gozo nas loucuras sob transferência. Opção Lacaniana, São Paulo, n. 79, julho/2018.
LAURENT, É. Princípios Diretores do Ato Analitico, 2006. Disponível em:  https://www.wapol.org/pt/miembros/articulos/Template.asp?intTipoPagina=4&intPublicacion=5&intEdicion=27&intIdiomaPublicacion=9&intArticulo=268&intIdiomaArticulo=1. Acesso em 04 out 2020.
MILLER, J.-A. L’orientation lacanienne: L’Être et l’um. Curso pronunciado no Departemento de Psicanálise da Universidade Paris VIII. Lição de 23 de março de 2011. (Inédito).
MILLER, J.-A. L’orientation lacanienne: L’Être et l’um. Curso pronunciado no Departemento de Psicanálise da Universidade Paris VIII. Lição de 21 de março de 2007. (Inédito).

[1] A homofonia do “esse Um” nos remete ao S1.  Lacan o soube dizer ao propor o conceito de moterialité.
[2] Troumatisme é um termo criado por Lacan (lição de 19/02/1974), a partir do jogo de palavras em francês (trou – furo e traumatisme), que nos dá a dimensão do trauma como um buraco no interior do simbólico.
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