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Que nos restou de duas conversações de laboratórios, on-line?

Joe Webb - Selected collages - Good Night
Joe Webb – Selected collages – Good Night
Daniela Nunes Araujo*
Vanessa Serpa Leite
Associadas do Instituto de Psicanálise da Bahia (IPB)
*Coordenadora adjunta do CIEN (Centro Interdisciplinar de Estudos sobre a Criança) Bahia

Nos dias 07 de maio e 04 de junho de 2020, o CIEN Bahia, representado pelo laboratório A criança e o jovem na hipermodernidade de Salvador e por um novo laboratório, agora em formação, intitulado O que vem com o adolescer: muito mais do que se diz, de Teixeira de Freitas, promoveu duas conversações, de forma on-line, sendo a primeira A criança abrigada entre os discursos, o laço social e suas deficiências e a seguinte Impasses e desafios na formação de um laboratório do CIEN.

Tivemos a oportunidade de conversar com diversas pessoas envolvidas com o CIEN no Brasil por meio da plataforma zoom, dispositivo on-line favorecido por conta do distanciamento social o qual fomos submetidos neste momento em que o vírus COVID-19 assola o mundo, interrompe o encontro de corpos, não sem deixar efeitos na criação de novas possibilidades de manutenção da transferência de trabalho. Dessa forma, interagimos com um grupo de cerca de 30 pessoas que se encontravam em diversas cidades brasileiras e participaram ativamente trazendo contribuições e questões em ambas conversações.

Na primeira conversação proposta, o tema disparador foram os efeitos de um trabalho realizado entre final de 2019 e início de 2020, em um abrigo de crianças e jovens, através de uma vinheta prática: o laboratório destacou elementos a respeito da demanda inicial de trabalho na instituição, a qual surgiu a partir do que parecia restar de trabalhos antecedentes de faculdades que faziam intervenções com distintos atores do abrigo, entretanto de forma menos intensa com os cuidadores de crianças e adolescentes em situação de vulnerabilidade social, mas que tinham suas questões e impasses.

As conversações nesta instituição, efetivamente, ocorreram de forma não tão fácil: contingências e justificativas variadas se passaram, de modo que as conversas estiveram, por vezes, impossibilitadas. Entretanto, o esforço das participantes foi o de tornar, de alguma forma possível, a circulação da palavra. Esta especificidade institucional parecia denunciar algo: a dificuldade do encontro, entre eles, equipe de profissionais que ali trabalham. Onde havia faltas, doenças, equipe incompleta, saídas inesperadas de funcionários para resolver as urgências institucionais, o laboratório trabalhou para que as pessoas pudessem falar desses buracos e não só buscar tapar incansavelmente essas faltas, desnaturalizando o que se evidenciava.

Uma das questões emergidas nesta primeira conversação provocou as praticantes do laboratório a elaborarem mais a respeito do modo de responder e perceber a demanda dos funcionários da instituição, onde ora aparecia uma dificuldade de sustentar essas conversações e ora parecia direcionarem a demanda para um saber pronto, respostas para os dilemas vivenciados naquele ambiente. Questão essa que, à medida que a palavra circulava neste momento on-line, nos fez retornar ao conceito de analisante esclarecido, ou seja, conversamos sobre como nossa postura de manter as conversações nas condições descritas, seja com o número de participantes presentes e possível, possibilitou que se falasse “a respeito do furo”, da falta de profissionais em número suficiente de modo a um trabalho efetivo. Dessa forma, concluímos que cabe ao analisante esclarecido, diante da ética da psicanálise, não recuar ante o que aparece como sintoma na instituição, e sim abrir o vazio pulsante para produção de saber.

Para que se preserve um vazio pulsante na conversação e, consequentemente o trabalho dos participantes, é fundamental a  presença  de  ao  menos  um analisante esclarecido – na precisa expressão cunhada, há muitos anos, por Beatriz Udenio -, que possa sustentar uma posição de não-saber. “Trata- se muito mais de despojar-se de toda expectativa de tornar-se célebre” (UDENIO, 2018, p.59) como um mestre que traria alguma “verdadeira” solução para o impasse, ao invés de estar numa posição de dentro-fora, visando o vazio pulsante. Assim, a posição do analisante esclarecido numa conversação do CIEN está diretamente relacionada a uma posição de êxtimo (MAIA, 2019).

Como o trabalho de um laboratório do CIEN pode então lidar com as demandas? Esta parece ter sido uma questão que perpassou, não apenas a primeira, mas também a segunda conversação on-line. O que podemos circunscrever em um trabalho de laboratório, a que demandas responder ou não, a quais demandas demarcar um limite e com quais efetivamente trabalhar como impasses a circular em forma de palavras? Essas poderiam ser perguntas extraídas como efeitos destes dois momentos.

O que é um laboratório do CIEN? A partir deste disparador, a segunda conversação trouxe então duas experiências de tentativas de construção de novos laboratórios um tanto opostas: enquanto em uma das experiências a demanda de trabalho parecia não estar circunscrita com tanta clareza nos profissionais de uma emergência pediátrica, na outra experiência discutida, com profissionais da área da educação, os participantes se viram embaraçados diante do excesso de demandas.

Circulou, assim, uma nova questão na segunda conversação on-line: se seria possível fazer abertura para uma demanda em uma prática de laboratório. Neste caso, um laboratório constituído por pessoas que trabalham na mesma instituição onde se propõe as conversações, é viável? Já não foi a primeira vez que aqui na Bahia nos fizemos esse questionamento, do mesmo modo que percebemos a dificuldade de se trabalhar no âmbito da saúde, principalmente com atores como médicos, que nos transmitem uma dificuldade maior para se colocarem com impasses e furos de saber.

Também pudemos extrair deste momento a atenção e o cuidado que os participantes de um laboratório devem ter para se limitar a demanda quando o excesso dela aparece. A prática de um laboratório em instituições tem início e tem fim. Portanto, aí se encontra a importância de circunscrever os impasses geradores, não sem poder acolher, de futuro, outras demandas a novos trabalhos, mesmo que em um mesmo local.

Apareceu, principalmente para quem está começando com as práticas de laboratório, a questão a respeito do desafio de se fazer a torção da demanda. Uma demanda de respostas prontas por parte dos participantes, ou mesmo de palestras, de atendimento clínico: que seja transformada em um trabalho de conversação inter-disciplinar, onde não há um mestre, mas impasses que circulam em busca de um “fazer-saber” novo a se construir. É também a torção que faz furo e viabiliza uma conversação.

E por fim, quando podemos entender que um laboratório se constituiu? Essa é uma pergunta que também se associou à questão da demanda, mas não apenas  a ela e sim a prática, a experiência, o que se constrói a partir dela. Caberia a cada participante checar como se coloca nessa experiência, podendo ter claro um campo de investigação e o impasse de cada um. Há uma ética que não é a do bem, senão do bem-dizer.

Cabe lembrar, como bem apresentado no próprio Blog do CIEN Brasil, que a coluna vertebral é a psicanálise de orientação lacaniana. O que se propõe com as práticas é abordar as dificuldades encontradas por crianças e adolescentes no laço social, mas de forma inter-disciplinar. As conversações sobre as conversações ilustram como a prática é susceptível de transformar. Que os participantes, sejam eles crianças, jovens, ou profissionais que com eles trabalham, possam encontrar um lugar onde enderecem seus sofrimentos e possam criar suas próprias soluções. Ou seja, quando o real se apresenta sob a forma de um impasse, o CIEN convida à conversação. “O impasse na prática interdisciplinar, muitas vezes, é efeito de um acontecimento real que fez corte no cotidiano do trabalho, abrindo a experiência a um tempo de compreender. O CIEN se interessa pelas particularidades dessa abertura” (CIEN BRASIL, 2012). A estrutura deste trabalho se dá, então, em torno de laboratórios que se colocam a trabalhar numa investigação, a partir de um tema escolhido que causa a conversa de seus integrantes.

Para concluir, ao relatarmos a experiência a gente se escuta e isso produz efeitos. Uma conversação de laboratórios não existe sem as consequências. É ao nos darmos conta desses efeitos novos que ecoam em nós, que percebemos que uma conversação de fato existiu. Seja uma conversação da prática de um laboratório em alguma instituição, seja uma conversação proposta para se discutir um tema qualquer, seja uma conversação que tenha como disparador um filme, ou mesmo uma conversação entre os próprios participantes de um laboratório, além daquelas que se dão de forma aberta, entre laboratórios. Fato é que essas duas conversações propostas pelo CIEN Bahia, mesmo no modo on-line, muito nos provocaram e já repercutiram em outros momentos de encontros, assim como na efetivação de um novo laboratório, agora em formação.


Referências
CIEN Brasil. Blog CIEN Brasil, 2012. Disponível em: http://cien-brasil.blogspot.com/p/cien.html Acesso em: 16 nov 2020.
MAIA, A. O infamiliar e o êxtimo nas conversações inter-disciplinares do CIEN. Em: CIEN Digital, n 23, nov 2019.
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