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Ultrapassamos os 28 minutos

Eugenia Loli - Enceladus Pilgrims - 2017
Eugenia Loli – Enceladus Pilgrims – 2017
Ricardo Gusmão
Participante do Núcleo de Psicanálise e Audiovisual do Instituto de Psicanálise da Bahia

É uma tarefa difícil apontar quais fatores fazem com que sejamos atraídos pela narrativa de uma obra audiovisual, no entanto acho que a principal delas é claramente a identificação com os personagens ou, ao menos, com o universo ficcional. E este primeiro elo que será decisivo para que o público assista ao filme até o final se dá nos primeiros 28 minutos da trama, tempo reservado no roteiro para apresentar os personagens em seu cotidiano, algo que Joseph Campbell (1995, p.36) chamou de “mundo cotidiano” ou “mundo comum” ao apresentar as etapas da Jornada do Herói.

É antes dos 28 minutos que Wesley Gibson, personagem de O Procurado (Wanted, 2008), nos é apresentado vivendo uma vida sem nenhum glamour, na qual sofre com os abusos da sua chefe e com a traição de sua namorada que transa com seu melhor amigo, tudo isso antes dele se tornar um assassino capaz de fazer com que balas façam curvas antes de atingirem o alvo. Também é antes dos 28 minutos que conhecemos o jovem Donnie Darko (Donnie Darko, 2001) com suas crises de sonambulismo, bem antes de uma turbina de avião atingir o telhado do seu quarto e mudar toda a sua vida e das pessoas ao seu redor. Após os 28 minutos, ocorre o chamado para a ação e a partir daí adeus normalidade, adeus mundo comum, tudo é imprevisível, tudo é incerto. Os 28 minutos são o véu que separa a nossa realidade da realidade ficcional.

Aqui, no entanto, é importante destacar que embora no cinema a média dos 28 minutos seja seguida cronologicamente à risca, ao transportar esse conceito para o mundo das séries, faz-se necessário ampliá-lo um pouco pelo próprio caráter mais amplo do formato seriado. Até mesmo quando o cinema toca no formato serial, com sequências como Harry Potter, Matrix e Vingadores, os 28 minutos estão lá em cada filme isoladamente, mas algumas vezes na forma de um filme inteiro, que dura cronologicamente muito mais que isso. No caso dos Vingadores (Avengers) que conta atualmente com quatro longas nos quais é possível destacar este mundo comum nos 28 minutos iniciais de cada filme, podemos encontrar ainda o mundo comum dos intervalos. Pois, como nos mostra Lacan (1972/ 2012, p. 79), o formato serial só é dado pelo intervalo, e no caso da série Vingadores, o intervalo também é composto de filmes, nos quais vemos o mundo comum de cada um dos heróis isoladamente, com filmes como Homem de Ferro, Thor, Capitão América, etc. E o mais curioso é que ao encararmos cada um destes filmes como parte do mundo comum da série Vingadores, teremos de assumir que cada um deles isoladamente possui também seu mundo comum nos primeiros 28 minutos, chegando próximo de um fractal.

E embora ninguém procure assistir a um filme para ver duas horas de mundo comum, é a partir deste mundo que é comum tanto ao personagem quanto ao público, que nos permitimos sermos levados para terras distantes e situações pelas quais jamais passamos e esperamos nunca passar, até por que o mundo comum é confortável, aconchegante, seguro e familiar, como o sofá no qual nos encontramos enquanto John Connor carrega sozinho a responsabilidade de vencer a Skynet e salvar toda a humanidade da extinção. O que ocorre após os 28 minutos não é para nós, pois nossa vida se dá inteiramente antes desse tempo, jamais recebemos uma carta de Hogwarts, jamais partimos para levar um anel maligno para ser destruído em uma montanha, nossa vida segue a normalidade do dia que nascemos ao dia que morremos, sem desvios para conflitos surreais, assim como o Sol nasce todas as manhãs, ou será que não?

Para o filósofo empirista David Hume nada é tão certo assim e essa certeza que nos toma por completo em nossa vida cotidiana, certeza de que o Sol nascerá todas as manhãs, como o exemplo usado pelo próprio autor (HUME, 1999, p.48), ou de que sempre será seguro sair de casa para nossos trabalhos, ou para a nossa rotina, seja ela qual for (para usar um exemplo próximo da situação que estamos vivenciando com a pandemia) é fruto do hábito de observar que determinado fenômeno sempre ocorreu dentro daquele padrão. No entanto um hábito nada mais é que um produto da memória de eventos passados, e podemos até supor que tudo continuará ocorrendo seguindo este padrão, mas não passará de uma especulação, pois não é um atributo do passado garantir a normalidade do futuro, embora gostemos de pensar dessa forma a maior parte do tempo.

A grande questão é que nos últimos meses ultrapassamos os nossos próprios 28 minutos, e agora, querendo ou não, temos uma longa jornada pela frente antes de retornarmos ao nosso adorado mundo comum. Deixamos o que nos era familiar para trás, nunca estivemos tão longe do condado, como diria um certo hobbit, e mergulhamos em um desconfortável mundo de incertezas e perigos. A diferença é que nada disso é tão glorioso na vida real. Não há glória quando o risco é real, o isolamento é real e não temos uma visão tão clara do futuro quanto costumávamos ter ou acreditávamos que tínhamos se optarmos pelo ponto de vista de Hume. O que podemos fazer é continuar lutando para que o problema que hoje nos cerca cause o menor dano possível a nós e à sociedade, para que no futuro tudo possa se ajustar, em um novo mundo comum, em novos primeiros 28 minutos.

Ao atravessar o véu da ficção nos deparamos com um estranhamento peculiar que vai ao encontro do Unheimliche freudiano, esse infamiliar que no meio de tantas formas de se manifestar aparece também naquilo que deveria estar do outro lado da tela, mas que transborda para o nosso cotidiano, e aparece para nós como um objeto estranho que nos aterroriza, um objeto que não deveria estar ali, que contradiz a nossa normalidade, da mesma forma que no cinema de horror, o medo pode aparecer na forma de mortos que caminham, bonecos capazes de matar, ou visitantes vindos de outros planetas. Em nosso mundo algo está fora do lugar, as ruas ficaram mais vazias, o medo se manifesta a partir de um mal invisível que pode nos encontrar a partir do que nos é mais familiar, nossa família e nossos amigos. E já não sabemos se ao ver aquele velho rosto conhecido, pelo qual nutrimos tanto carinho, podemos nos alegrar ou temos que temer um mal que se oculta sob a face daquilo que nos é mais íntimo. Tudo aconteceu muito rápido, pouco tempo atrás vivíamos a tranquilidade de um mundo comum, agora parece que fomos transportados para O Enigma de Outro Mundo (The Thing, 1982), no qual a face do conhecido, pode esconder o que nos é estranho. É um cenário novo e por isso difícil de lidar, mas se formos cuidadosos e pacientes aprenderemos juntos e nos adaptaremos a ele, para que em pouco tempo estejamos novamente no cenário conhecido, próximos daqueles que amamos e sem a preocupação de que um abraço ou aperto de mão possa trazer algo mais que o gesto de alegria de um reencontro.


Referências
CAMPBELL, J. O Herói de Mil Faces. São Paulo: Editora Cultrix/Pensamento, 1995.
FREUD, S. (1919). O Infamiliar/Das Unheimliche. Em: Obras incompletas. Minas Gerais: Autêntica, 2019
HUME, D. Investigação Acerca do Entendimento Humano. In: Hume. São Paulo: Nova Cultural, 1999 (Os Pensadores)
LACAN, J. (1971-1972). O Seminário, livro XIX: … Ou pior. Rio de Janeiro: Zahar, 2012

Filmografia
CAPITÃO América: o primeiro vingador. Joe Johnston. EUA: Marvel Studios, 2011. 1 DVD (2h4m)
DONNIE Darko. Richard Kelly. EUA: A Flower Films Productions: Adam Fields Productions: Gaylord Films, 2001. 1 DVD (1h48m)
HARRY Potter. Chris Columbus; Alphonso Cuarón; Mike Newell; David Yates; Heyday Films. Reino Unido, 2001-2010. 1 DVD
HOMEM de ferro. Jon Favreau. EUA: Marvel Studios, 2008. 1 DVD (2h6m)
MATRIX. Irmãs Wachowski. EUA: Austrália: Village Roadshow: Silver Pictures, 1999-2003. 1 DVD
O ENIGMA de outro mundo: John Carpenter. EUA: Universal pictures: Turman-Foster Company, 1982. 1 DVD (1h49)
O EXTERMINADOR do Futuro. James Cameron. EUA: Hemdale Film Corporation: Pacific Western Productions: Cinema 84, 1984. 1 DVD (1h48m)
O PROCURADO. Timur Bekmambetov. EUA: Universal Studios: Spyglass Entertainment: Top Cow: Relativity Media, 2008. 1 DVD (1h50m)
O SENHOR dos anéis: A sociedade do anel. Peter Jackson. EUA: WinNut Films: The Saul Zaentz Company, 2001. 1 DVD (3h48m)
OS VINGADORES. Joss Whedon, Joe Russo, Anthony Russo. EUA: Marvel Studios, 2012-2019. 1 DVD
THOR. Kenneth Branagh. EUA: Marvel Studios, 2011. 1 DVD (1h55m)
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