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nº 10 | Ano 4 | Dezembro de 2015

 

Carne e corpo1

(Corpo de mãe, corpo de filha, corpo de mulher)

Paola Salinas - EBP/AMP

 

O que é a clínica do parlêtre e sua articulação ao real?


Como pensar nessa clínica o corpo de mulher?


O real, na dimensão que nos interessa está atrelado ao que chamamos de corpo falante.


É Edmund Husserl, nos diz Miller, que introduz a diferenciação entre os corpos físicos e o meu corpo. É para essa expressão singular do meu corpo, que o termo carne surge.


A ideia de corpo falante guarda alguma relação com a ideia de carne? – questão do cartel – o imaginário e a carne.


Ele nos diz: “penso minha carne com uma caracterização singular, meinen Leibe, a saber, o que, sozinho, não é um simples corpo, mas sim uma carne, o único objeto no interior de minha camada abstrata da experiência ao qual atribuo um campo de sensação à altura da experiência”2 . O significante carne, pontua Miller, é precioso, e digo, preciso, pois demarca àquilo que se distingue dos corpos físicos ao mesmo tempo que pode nomear a união da corpo e da alma descrita por Descartes. Referir-se a carne é dizer de uma experiência frente ao corpo físico próprio, este termo então, pelo menos em Husserl, engendra algo do singular da experiência de se ter um corpo, que implica em uma conexão entre o corpo e a língua.


No que concerne à psicanálise, ela faz um aporte: não podemos falar dessa experiência de corpo se não tocarmos o gozo, introduzindo assim uma outra substância, a substância gozante.


Lacan3 retoma o vocábulo, dizendo que a carne traz a marca do signo, é recortada pelo significante, desvitalizada, cadaverizada, possibilitando ao corpo que o Outro do significante possa significá-lo. Assim a questão para os psicanalistas está nessa junção entre o simbólico e o corpo, no mistério da união da fala com o corpo, que então não é mais carne, mas que preserva opaco algo do real.
Poderíamos a partir daí pensar algo dessa carne que embora porte uma marca, escapou à articulação significante? Ou seja, uma carne não mais orgânica, não de qualquer corpo, mas do meu corpo, que sobra como resto da simbolização e ainda, como parte não simbolizada.


Se assim for, essa carne guardaria intensa relação com o real do corpo de cada um e consequentemente com o gozo em jogo neste corpo, caracterizado pela singularidade, bem como pela não possibilidade de laço com o Outro.


Esse gozo está fora do laço por não estar totalmente recoberto pelo simbólico que representou o corpo na relação com o Outro, sob a forma de um sintoma.


Tomo a clínica da devastação nas mulheres. Nesta clínica entre mães, filhas, mulheres, mas não exclusivamente: haveria algo que se transmite de carne a carne?


Esta pergunta se sustenta na ideia da dimensão de um além e um aquém, entre a escrita e a carne4 . Ou seja, um além da marca na carne, que a faz corpo e constitui um corpo fantasmático no édipo, e um aquém, antes do édipo, que guarda um gozo opaco que segue afetando o corpo.


Tomar essa hipótese, seria ir na via de que algo dessa carne poderia ser transmitido como pedaço da lalíngua totalmente fora do sentido. Desse modo, um gozo, que escapa ao sentido e ao significante poderia atrelar-se a esses pedaços de língua, de língua materna, que atravessa um parlêtre.


Penso que só podemos avançar em tal questão se tomarmos o real como um real, para cada um, o qual se localiza no corpo. Como dissemos, a carne somente se faz corpo pela impressão do signo, trata-se de uma operação de separação que tem como consequência um retorno do gozo fora do corpo-carne5 .


Apoio-me no passe de Silvia Salman e na sua resposta a uma pergunta que lhe fiz a esse respeito: “Em seu caso singular a anorexia quando você era um bebê, parece ter o estatuto de uma marca na carne, com a consequente produção de um gozo opaco e mortífero articulado ao Outro materno. Poderíamos pensar que a afetação do corpo da menina se articularia de alguma forma ao corpo materno? Ou seja, antes do Édipo, algo teria sido transmitido, quase sem palavra, entre mãe e filha?6


Silvia nos responde: “Penso a anorexia como um acontecimento de corpo enodado ao gozo do Outro materno. Fechar a boca até quase desaparecer foi a resposta precoce ao enigma daquilo que pôde ser lido na análise como a melancolia na mãe. Tal como o coloca Lacan no Seminário 11 7 quando se refere à operação de constituição do sujeito, a fantasia de desaparição é o primeiro objeto que o sujeito propõe como resposta ao enigma do desejo materno.
Essa resposta inicial, efetivamente antes do Édipo, marcou um modo de funcionamento libidinal que foi sendo dialetizado na análise. Primeiro sob a forma do corpo da histeria, ou seja, sob o regime do pai, que tomou seu lugar tanto no sintoma como na fantasia. E, ao final, um pouco além, sob a forma de um corpo de mulher, lugar de um novo regime de satisfação que implica um menos do padecimento do sentido edípico e um mais de consentimento a uma erótica própria do desejo”.


Sua resposta deixa claro que se o corpo materno está em jogo, é enquanto gozo. É como traço de um gozo, traço de um modo de gozar, que pode marcar a filha. Estamos no registro do corpo não simbolizado, resto que não se insere na lógica edípica, resto opaco que é preciso tocar em uma análise pela via do ato ou ainda, do corte. Articulamos assim a dimensão do feminino, como o ilimitado que não pode ser dito pelo falo, ou seja um gozo opaco que produz efeitos e frente ao qual é necessário inventar algo.


Seria no campo do Outro materno, antes do édipo onde o mistério do corpo falante poderia se colocar? Ou seja, estaria aí o ponto de junção da lalíngua e o corpo?. Mais do que qualificar como materno ou paterno, trata-se de um gozo não recortado pelo significante, que, uma vez feita a passagem ao édipo, precisa de um tratamento na sua vertente opaca.


Se podemos verificar a devastação entre mãe e filha, parece-me que algo do corpo materno, como signo de uma presença de gozo, como Silvia nos diz, se transmite a uma filha. Nesse caso, é o gozo opaco que se refere ao feminino como fora da ordem e da contagem que pode aparecer na via de devastação.


Se o ilimitado feminino pode ser uma das caras da devastação, algo da ordem contingencial pode vir a fazer uma borda. Assim a intima relação com o corpo materno, diz de um gozo, do parlêtre, traumático, que pode se engendrar ou não na construção da fantasia, mas que precisa ser atravessado em uma análise.
Trata-se de uma passagem do dark continent que toca o corpo materno ao não-todo. Ou seja, a possiblidade de incluir o feminino como invenção frente a uma ausência de parâmetro. Ir além da ideia do não-todo como excesso e pensa-lo como ausência de medida comum, que pode ser inventada. Uma espécie de trajeto de corpo de mãe, traço de gozo, corpo de filha, para então corpo de mulher. O caso de Silva Salman exemplifica isso lindamente.

 

1 Texto para atividade preparatória das Jornadas da EBP-SP 2015 – Corpo de mulher. Produto do cartel: “O inconsciente e o corpo falante”, composto por: Cristiana Gallo, Emmanuel Mello, Eduardo Benedicto, Fabiola Ramon, Maria Célia Reinaldo Kato, Sílvia Sato e Paola Salinas (Mais-Um).

2 Husserl, apud Miller, Ibid. (Meditações Cartesianas)

3 Lacan apud Miller, ibid.

4 Ver o texto de Ram Mandil, no qual discute a identificação a traços que “estariam situados num nível elementar, da ordem da pegada, anterior à sua representação significante”, a partir da leitura de Miller do seminário 6 de Lacan. Mandil, R. A psicanálise e os modos contemporâneos de identificação. Opção Lacaniana on line, n 4.

5 Scilicet do X Congresso da AMP. Verbete: "Carne", Éric Zuliani, pág. 61.

6 Um corpo de mulher. Entrevista a Silvia Salman, por Paola Salinas e Cristiana Gallo. In: http://leonardocr93.wix.com/jornadas2015ebpsp#!um-corpo-de-mulher-entrevista-silvia-sal/cvxo

7 Lacan, J.: O Seminário, Livro 11. Os quatro conceitos fundamentais da psicanálise. Jorge Zahar Ed., Rio de Janeiro, 1985, p.204.