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A sessão obsoleta e a presença do analista

Joe Webb - Selected collages - Hot Off The Press
Joe Webb – Selected collages – Hot Off The Press
Marcelo Magnelli
Associado IPB

O texto A Sessão Obsoleta foi publicado na Revista El Caldero de la Escuela, número 82, em final de 2000, com o título La Sesión Obsoleta. Em português, em 2001, compôs a Opção Lacaniana de número 30. Nele, Marcela Antelo busca articular porque a sessão analítica pode ser pensada como obsoleta, destacando a noção de presença do analista como fator crucial para a justificativa desta impossibilidade de se reduzir as condições de uma análise ao que se coloca em jogo nos dispositivos virtuais.

Ainda na introdução, a autora destaca que, à época, estávamos imersos em uma popularização de recursos tecnológicos que permitiam estes encontros virtuais e isso tomaria o discurso analítico de surpresa. Em 2020, também nos vemos tomados de surpresa quando a pandemia do novo coronavírus exige justamente a adoção crescente de modos de relações onde se evite a disseminação do vírus e um empuxo-ao-virtual se mostra uma ação importante para a manutenção temporária dos encontros, não-sem o “regozijo tecnológico da época” (p. 22) que consiste em uma tentativa de controle sobre a voz, a imagem, e, até mesmo, os sinais vitais. Parece-nos que aqui há um curto-circuito: os sinais vitais foracluem a vida, justamente por ela não ser capturável pelos cálculos científicos.

Diante deste empuxo de hoje – e de ontem -, o que seria a presença do analista que se coloca em discussão? Para responder a isso, Antelo nos leva ao longo da obra lacaniana. No Seminário I, destaca a presença do que não é só o corpo (do analista) sentado na poltrona, mas sim algo de irruptivo que ocorre na sessão analítica. Esta presença não é fácil de ser vivida. É um sentimento relacionado a um mistério do qual mantemos distância, ao qual não nos acostumamos. Em seguida, nos lembra que o desejo é um modo de se tentar tamponar o lugar da presença real e o amor é um apetite de presença que serve de mola para o mais-de-gozar.

Os dispositivos tecnológicos pretendem um poder sobre este mais-de-gozar e seus objetos, ao permitir ao sujeito o controle sobre a presença do olhar e da voz. Ao unir-se ao corpo, os gadgets buscam tentar eliminar, ou manter sob controle, o que faz da presença real, excessiva. Este seria o sonho da ciência.

Marcela Antelo nos diz que a tese de Lacan sobre a presença do analista é de que

[…] há algo ininterpretável numa análise e que este algo é a presença do analista. Miller o resumiu na sua primeira aula deste ano dizendo que o analista encarna algo do gozo, a parte não simbolizada do gozo, a parte impossível de digitalizar (ANTELO, 2001, p. 24).

Colocar o corpo na jogada, então, não é garantia, mas cria as condições de possibilidade para que a presença analítica aconteça. Não há como provocar efeitos analíticos sem que tenhamos skin in the game[1]. Só há leitura do inconsciente se há corpo, se há presença como disrupção.

Por outro lado, o encontro virtual convoca a uma “transferência virtual» (p. 24) onde, ao não se experienciar a presença real, elimina-se parte do gozo, assim como a vergonha, o que permite aos jovens, por exemplo, serem “outros para ele mesmos” (p. 24), como nos diz Antelo. Parece-me que, com isso, desconhecem de seu gozo feminino, desconhecem aquilo que os fazem não-todo, mantendo-se adormecidos.

A transferência, portanto, está assentada sobre um gozo não assimilável, não exposto, envergonhável. Por isso “os não-pudicos erram” (“Les non-pudes errent”, parafraseando Lacan em seu Seminário XXI, Les non-dupes errent). A transferência encontra-se sustentada fundamentalmente no gozo de alíngua, que parasita o corpo, o que “constitui sentido e suscita sentimento” (LACAN apud ANTELO, p. 24). A transferência virtual, portanto, vela o gozo de alíngua com o pudor. O que supre o gozo feminino, de alíngua, aquém da fala, é o gozo fálico, que tampona o furo do sexual com sentido.

A autora nos fará ver, então, que convém não tomar a presença do analista como uma atitude, tal qual propõe Sacha Nacht (pós-freudiano da ego psychology) em seu livro A presença do analista. Em aula homônima de seu Seminário 11, Os quatro conceitos fundamentais da psicanálise, Lacan nos sinaliza que isso tornaria o analista captável, dissipável e não ambíguo. Antelo nos sinaliza que é esta a perspectiva que permite, por exemplo, que se produzam inteligências artificiais (IA) digitais com a função de intervir psicologicamente. A autora cita uma destas IAs, denominada Dr. Sbaitso[2] (1990).

Ela vem na linhagem temporal de outras, como sua antecessora Eliza (1964-66) e sua sucessora ALICE (1995) e entra em série com outras mais contemporâneas, como Siri, Alexa e Google Assistente. Estas IAs teriam como pré-requisito passarem no Teste de Turing, que testa a capacidade de uma máquina de exibir um comportamento inteligente equivalente ou indistinguível de um humano. Se o avaliador não puder distinguir com segurança a máquina do humano, a IA passa no teste e todas as supracitadas passaram (GUNKEL, 2017, p. 7).

No entanto, como nos disse Miller (1997) em Lacan Elucidado, na linguagem computacional não há engano, mas sim erros, o que fundamentalmente estabelece uma diferença da linguagem humana. Com isso, para se passar no referido teste, o fator avaliativo se reduz ao efeito imaginário do duplo e seus engodos.

O cyberser está, então, aquém da produção fantasmática, porém os instrumentos tecnológicos virtuais restam a serviço da fantasia, cuja função é fazer adormecer e foracluir o corpo. O corpo se torna obsoleto.

Penso que a presença do analista é a presença de um gozo do corpo, que pode ser lido a partir da fantasia neurótica, mas que não se resume a esta. É o despertar insuportável de um gozo não cifrável através da maquinaria significante. Quando não há presença, adormecemos, impedindo a mudança brusca que é o encontro com o infamiliar.

Finalmente, fico com uma questão: em encontros virtuais, enquanto possibilidade de se apostar no tratamento possível… se o corpo se torna obsoleto, o infamiliar não se apresenta e o sujeito permanece adormecido, como sustentar a transferência enquanto motor de uma análise?


Referências
ANTELO, M. La sesión obsoleta. Em: El Caldero de La Escuela.  Buenos Aires, v. 82, p. 22-25, 2000.
ANTELO, M. A sessão obsoleta. Em: Opção Lacaniana, v. 30, p. 53-55, 2001.
GUNKEL, Da. Comunicação e Inteligência Artificial: novos desafios e oportunidades para a pesquisa em comunicação. Em: Revista Galaxia, n. 34, jan-abr.,  São Paulo, 2017. p. 05-19. Disponível em: https://www.scielo.br/pdf/gal/n34/1519-311X-gal-34-0005.pdf
MILLER, J.-A. Lacan elucidado: palestras no Brasil. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Ed., 1997.

[1] arriscando a própria pele
[2] Ainda disponível no link: https://bityli.com/FhGYV.
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