Rogério Barros (Editor) Pandemia! Covid-19! Um stop no mundo organizado pela nossa realidade fantasiada, e…
Considerações sobre o atendimento on-line

Pedro Roberto Ivo das Neves
Associado do Instituto de Psicanálise da Bahia – IPB
Professor Assistente da Universidade Estadual do Sudoeste da Bahia – UESB
Justamente nesse ambiente que questionamos em relação ao atendimento numa análise, mas também quanto ao que nele ocorre sobre a transmissão do saber analítico, é que fui encontrar uma fala, mais que um texto escrito, vale ressaltar, que me fez questão no momento inaugural de sua transmissão. Por estar nesse ambiente virtual, pude trazê-la à atualidade (LÉVY, 1996) e escuta-la atentamente mais de uma vez. Esta fala foi da transmissão de Sandra Grostein, no Seminário de Formação Permanente da EBP-BA, ocorrido em 11 de junho de 2020.
Vale desde logo dizer que para fins da transmissão o retorno a uma nova escuta pode se dar, obtendo disso os seus efeitos, também depois e mediante esse mesmo ambiente. Já considerando uma sessão de análise, a escuta ao que cada um fala, analisando e analista, só se dá uma vez: está na ordem do lapso enquanto intervalo. Seu efeito, se um houver um, é daquele instante lógico, no momento cronológico daquele encontro.
Se a fala da transmissão em psicanálise, uma vez gravada em vídeo que se torna disponível num site, pode dela se obter outros efeitos, além daquele da primeira escuta. Isso não se aplica para o sujeito de uma análise, ainda que a sessão até venha a ser gravada e uma escuta pelo indivíduo que nela esteve venha a ser procedida. Os efeitos seriam bem outros.
Na sessão analítica, o que se procede do analista mediante a escuta, aquilo que se faz ato, com efeito de interpretação, como corte que abre para outro lugar ao sujeito, é daquele momento único da fala, da suspensão da sessão, de um ruído feito pelo analista, de algo que ele introduz frente ao que o paciente traz no deslizar associativo de sua fala. Ato não-limite, ato falho, “pensamento inconsciente que emerge no pensamento consciente, na fala, no corpo, e desloca o ato, faz com que diga outra coisa?” (MILLER, 2014, p 6), nos diz Miller, com Lacan, interrogando quanto a relação da passagem ao ato com o ato analítico.
A esse momento do ato analítico não se volta, não é como a transmissão que o conferencista falante diz para o Outro, para todos, e uma escuta captura no singular algo que lhe faz questão, também como um ato. Na sessão analítica o singular está posto desde o primeiro instante de sua abertura, na hora que adentra pela porta o paciente, ou pela luz de led da tela do dispositivo um vê o outro, ou no áudio do celular – um encontro de trabalho se inicia, é a transferência entre dois, e o trabalho que se procede, que preside esse encontro, é própria do caso a caso, relativa ao arranjo sintomático de cada na sua relação com o real. Sabemos que essa transferência se modifica, mas que é nela que se fundamenta a relação de um trabalho entre esse par de uma análise (KLOTZ, 1994; MILLER, 1994).
A questão, entre tantas colocadas por Sandra Grostein, que me pôs em trabalho, desde aquele momento da conferência proferida, é se estamos adaptando nossa clínica a essa realidade. Adaptar implica no ajuste de uma coisa a outra. Se é a forma que se adapta ao conteúdo se tem aí algum tipo de consequência diferente de quando é o conteúdo que se adapta à forma. Dito assim, é que o que ela põe em suspenso precisa ser devidamente considerado, desde aí, se não fosse por tudo o mais que nos trouxe na conferência.
Portanto, nesse breve artigo, podemos seguir refletindo pelo sentido extremamente pragmático que nos traz essa coisa do ambiente midiático como efeito. Como o isolamento é da ordem de uma pandemia, atravessa fronteiras e línguas, certamente que todos os analistas estão praticando atendimentos através do uso de dispositivos midiáticos, cunhados por Castells (1999) como Novas Tecnologias da Comunicação e Informação (NTCIs). Aqui vou adotar o nome que tem sido mencionado em nosso meio, “atendimento on-line”.
Esse atendimento on-line apareceu como dispositivo factível para a sessão analítica na pandemia com o isolamento forçado dos corpos. Ela está em uso por todos, não apenas por nós de orientação lacaniana. No momento seguinte em que todos, analistas e analisandos se recolheram no isolamento, mas a demanda de trabalho logicamente não se interrompeu, viram diante de si os dispositivos midiáticos capazes de conectar duas pessoas furando o isolamento social, mantendo os corpos fisicamente distantes. Sobre isso destaco de Gurgel (2020) uma ideia:
Separar os corpos para atender ao imperativo do isolamento social – este impossível de realizar porque a internet tem cumprido a função de comunicação social; o corpo está ausente, mas a voz e a imagem se presentificam via os artefatos tecnológicos (GURGEL, 2020, p. 3).
Mas o atendimento on-line não está datado com a pandemia face ao COVID-19, por outras razões, ligadas às mudanças de endereços de pacientes, por exemplo, essa modalidade já vinha sendo praticada.
Há trabalhos datados de duas décadas atrás sobre o assunto e muitíssimos ensaios escritos e gravados em vídeo conferências, nesse momento, de várias partes do mundo, mas notadamente no Brasil, pelos membros da Escola Brasileira de Psicanálise (EBP).
Bruce Fink, psicanalista lacaniano, PhD pela Universidade de Paris VIII, formação pela École de la Cause Freudienne, já em 2007, discutindo cuidadosamente o tema num capítulo de livro, menciona que atendera desde anos antes uma paciente por meio de telefone e evidencia a consequência dessa experiência em toda a sua clínica:
Pouco a pouco, comecei a incluir no meu trabalho sessões ocasionais por telefone com diferentes pacientes, alguns deles por não poderem sair de casa pela angústia esmagadora, outros por estarem doentes ou temporariamente imobilizados, e alguns por causa do carro ter quebrado. Isso possibilitou que essas pessoas continuassem suas análises, quando poderiam ter entrado em profunda depressão, outros continuaram passando por momentos difíceis, e outros ainda continuaram quando o medo de dirigir ou de andar de ônibus parecia paralisá-los para chegar nas sessões (FINK, 2017, p 319).
Vindo de fora do nosso discurso vale considerarmos uma formulação de Melvin Kranzberg e Carroll Pursell de que as revoluções tecnológicas são todas “caracterizadas por sua penetrabilidade, ou seja, por sua penetração em todos os domínios da atividade humana, não como fonte exógena de impacto, mas como o tecido em que essa atividade é exercida” (CASTELLS, 1999, p 50). No nosso caso com a prática analítica do atendimento on-line, vivemos um certo impacto, particularmente do lado do analista, enquanto essa modalidade já se configura no tecido do exercício da comunicação e troca de informação do analisando em sua ampla vida social.
É talvez oportuno considerar que o desejo do sujeito que exerce a psicanálise pode ser afetado, como tem sido por todos, no nível da economia libidinal proporcionada por essa tecnologia midiática que vem do Outro, como redução de investimento. Esse efeito nos sujeitos que exercem a psicanálise não estaria sendo assimilada no exercício do trabalho do analista, se incorporando por essa via ao fazer atual da psicanálise? Esse tipo de sutileza define um abismo e comporta a pergunta se nesse ambiente on-line o analista de orientação lacaniana está confortável com “um desejo de interrogar a la causa del desejo” (ARAMBURU, 1990, p. 28).
Mas o que se pode destacar, sobremaneira, é que a psicanálise é uma prática que se sustenta com um sujeito que se dirige ao outro através de sua fala, para se tratar, no que é recebido num trabalho em direção a verdade que lhe causa. De um lado o analisante e do outro o analista num trabalho do que fala por meio de fala.
Os dispositivos eletroeletrônicos que penetraram na vida cotidiana na atualidade, possibilitam no atendimento on-line que esse encontro se proceda com a fala e no qual é possível um trabalho analítico, se um analista aí houver.
Essa penetrabilidade conforma algo de pragmático e quanto a isso no que tangencia a prática psicanalítica o que podemos elucubrar? No analista com seu desejo e seu trabalho “o analítico é compatível com o a-pragmático” está na lógica em que uma interpretação “é algo que faz alusão, que faz ver a direção de outra coisa” (MILLER, 1997, p. 524).
Poderíamos supor que a própria absorção imediata, rápida e fácil do ambiente on-line com o uso de seus dispositivos para o trabalho analítico pode nos sugerir, por exemplo, o que nisso há de concorrência a favor do gozo, considerando cada caso.
Certamente se estaria levando em conta considerações feitas por Sinatra quando entre outras formulações afirma que
[…] la revolución tecnológica de última geración oferece infinidade de gadgets que se intruducen em el punto exacto de la fala estructural del sexo para oferecer renovados modos de gozar, cada vez más próximos a la realización de uma sexualidade virtual, pero también cada vez más cerca del autoerotismo (SINATRA, 2008, p. 65).
Mas corrobora-se que a questão, nesse caso, é outra já no uso que se faz aí desses dispositivos tem do outro lado um analista e não uma imagem erótica, na sessão on-line. Tem aí uma fala uma escuta e uma intervenção sob transferência de um analista com a política e a estratégia que conduz esse trabalho.
Portanto, não é para refutar, mas para compreender e responder contrariamente a uma simples adaptação do fazer analítico dentro desse novo modo de maneira automática, pragmática, visando resultados práticos, que nos interessa enfrentar o que está posto em curso.
“A tecnologia não é nem boa, nem ruim, e também não é neutra” postula Kranzberg (CASTELLS, 1999, p 81). Para a filosofia ‘neutro’ seria algo da ordem de “entidades que entram na composição do espírito e da matéria, não são mentais nem materiais, mas adquirem tais qualificações em virtude das relações em que entram” (ABBAGNANO, 2007, p 712). Os analistas sabem que aquilo que vindo do campo do Outro chega até o sujeito lhe causa.
E a experiência em curso revela que tanto os pacientes têm falado dessa nova modalidade como uma feliz decisão para o levar adiante de suas análises, como analistas têm registrado efeitos inusitados com seus pacientes. Esses depoimentos de trabalhos poderão concorrer para elucidar sobre essa clínica on-line que, assim como a tecnologia em que ela se apoia, assim, como a fala como o dispositivo primordial de uma análise, não parece haver qualquer indicador de sua suspensão como ambiente de trabalho do analista desde agora.