Wilker França Associado do IPB Esse texto é fruto de alguns questionamentos surgidos a partir…
Três perguntas para Gustavo Dessal

Durante o curso de 2021, o IPB, apoiado nos discursos de Lacan, abordou os impossíveis freudianos. A partir deste percurso e inspirados na leitura de dois livros, “Inconsciente 3.0: lo que hacemos com las tecnologías y lo que las tecnologías hacen con nosotros.” e “Face to facebook: una temporada en el manicomio global.”, fizemos três perguntas ao seu autor, Gustavo Dessal.
Lapsus (L): Numa época cada vez mais orientada por uma temporalidade na qual o que é impossível, hoje, pode deixar de sê-lo amanhã, a perda –de um ser amado, de um ideal, etc.- adquire um estatuto particular. Quais seriam os modos contemporâneos de resposta perante a perda de um ser amado?
– Gustavo Dessal (GD): As respostas são muito variáveis e ainda nos encontramos com as modalidades clássicas, desde o luto comum, que atravessa uma série de fases não sintomáticas, até o chamado luto patológico, que varia entre a depressão neurótica e a melancolia. São formas que continuam existindo e ainda devemos acrescentar algo que nós, analistas, conhecemos: seja qual for a sua variante, o luto jamais cicatriza por completo. É por esse motivo que uma perda ulterior pode reeditar outra que aparentemente tinha sido elaborada. Porém, se há algo de particular em nossa época, é que a renegação característica da morte no inconsciente se vê agora reforçada por diferentes fatores. Por uma parte, um discurso que promove a falsa promessa de um horizonte de imortalidade. Em todas partes, somos assediados por mensagens, inclusive validadas por estudos supostamente científicos, nos quais nos asseguram uma prolongação cada vez maior da vida. Isso é acompanhado por uma expansão de métodos cirúrgicos destinados a fabricar um semblante de eterna juventude. Aí também nos encontramos com uma modalidade específica de resposta ao luto. Muitos sujeitos padecem de uma séria dificuldade para assumir a castração que o tempo impõe, deixando sua marca no corpo. Envelhecer implica obviamente um processo de luto que, na atualidade, está interceptado pela miragem de uma vida sem limites. A morte se converteu no “maior inimigo da humanidade”, segundo palavras de Peter Thiel, fundador de Pay Pal, que inverteu boa parte de sua fortuna em investigações destinadas a combater o fim da vida. Kurtz Weil, anterior CEO do Google, persiste no empenho de “reviver” seu pai transferindo dados que incluem fotografias, vídeos, áudios, a sistemas de inteligência artificial que “recuperem” o cérebro do pai morto e recriem sua existência através de um avatar digital. Um par de anos atrás, uma companhia coreana de alta tecnologia de realidade virtual permitiu que uma mãe se reunisse com sua pequena filha morta através de um sistema de óculos inteligentes, em uma experiência pioneira vista por milhões de telespectadores e que foi o início de algo que logo se tornará quotidiano: a convivência entre as pessoas e seus seres queridos que faleceram, mas que são reeditados através de avatares com os quais se poderá dialogar. Tudo isso, que hoje nos resulta inverossímil, será tão habitual como, na atualidade, são as reuniões por Zoom.
– L: Quais seriam os efeitos sintomáticos de uma existência cada vez mais regida pela tecnologia, na qual a impossibilidade se caracteriza, entre outras coisas, pela impossibilidade de deter-se?
– GD: Em meu livro “Inconsciente 3.0” coloquei a tese de que existe uma relação entre a síndrome do TDH e o que se denomina “multitasking”. Se observamos a evolução dos dispositivos móveis, tablets, computadores, observamos que cada novo sistema operativo inclui a possibilidade de fazer mais tarefas simultâneas: a tela pode ser dividida entre as janelas de correio eletrônico, programador de texto, a possibilidade de assistir um vídeo e ouvir uma can algo volátil. A vida amorosa recebeu esse impacto também. Os aplicativos são instrumentos perfeitamente válidos para conhecer gente. Não se trata de fazer sobre elas (eles) um juízo moral, posto que sua utilização é muito variada e seus resultados também. No entanto, é algo que participa dessa corrente em que a desfocalização, a substituição veloz de um objeto por outro, a caducidade instantânea dos laços, é a regra habitual de funcionamento. A ênfase está em evitar a perda de algo que poderia ser melhor, em uma corrida sem limites. Deter-se implica na possibilidade de que emerja a angústia, por isso a velocidade tornou-se uma das principais defesas que as novas tecnologias nos proporcionam. Trata-se de evitar por todos os meios o confronto com o vazio, a escansão que supõe a cadeia significante, convertida em uma metonímia acelerada, uma espécie de euforia maníaca que perdeu seu lastro, a ancoragem, o que precisamente dá certa estabilidade ao discurso e deveria impedir sua dispersão.
– L: Se uma das novas formas da divisão do sujeito se caracteriza por estar localizada entre um dejeto inteiramente supérfluo e uma marca contabilizada em bases de dados que se multiplicam de forma exponencial, quais as condições de possibilidade para assumir uma posição de responsabilidade subjetiva?
– GD: Esta não é uma época propícia para o que denominamos “responsabilidade subjetiva”. Estamos na era da “indústria dos direitos”, não das responsabilidades. O ser falante, por defeito, está programado para fazer recair sobre o Outro a razão de sua castração. Nada melhor do que os tempos atuais para reforçar essa crença neurótica de que o gozo que me falta e que por direito me corresponde, me foi injustamente arrebatado. É uma fantasia eterna que agora encontra sua máxima expressão. Todos somos vítimas, todos somos seres abusados pelo Outro. Isso não desmente, claro, a existência de sujeitos que são vítimas reais de infâmias. Porém não estou me referindo agora precisamente a isso, mas ao fato de que a vitimização se converteu em uma posição subjetiva que ocupa um estrelato no panorama atual. Isso se alimenta de todos os ângulos discursivos e de todas as disciplinas. A crença delirante de que os genes explicam até nossas ideias religiosas, ou a escolha de nosso parceiro, é também uma forma de dissolver a importância crucial da responsabilidade do sujeito. E sabemos que existe uma relação estrutural entre o inconsciente e o conceito de responsabilidade subjetiva. Hoje nos encontramos com os extremos da culpa ou da inocência. Mas a tendência é ignorar a implicação que cada um de nós tem nas consequências de nossos atos. A hipertecnologização contribui para isso de maneira muito eficaz, dado que entregamos uma grande parte de nossa existência aos dispositivos. Aos poucos, eles vão se convertendo no relevo de nossa memória, de nossas lembranças, de nossas marcas subjetivas.