Pablo Sauce “Um lapsus @temático” Caros leitores, a seguir encontrará um campo múltiplo de leitura,…
Os algoritmos e a clínica orientada pelo real
Rogério de Andrade Barros
Membro da EBP/AMP, Diretor do IPB, Professor da Universidade Estadual de Feira de Santana
Os avanços tecnocientíficos nos levam a considerar como o discurso do mestre atual, ao digitalizar a vida em formas de interações em rede, administra o insondável do humano através da lógica algorítmica. Nessa perspectiva, a previsibilidade e indução comportamental passam a dar o tom de uma época, em que a causa real encontra-se reduzida ao gerenciamento da Inteligência Artificial que, através da codificação, pretende captar o desejo humano.
Sadin (2017) aponta que no século XX, a física quântica, a relatividade einsteiniana e a psicanálise freudiana desconstruíram a pregnância do antropocentrismo, produzindo um descentramento do homem moderno do seu eixo da consciência e controle. Esses golpes epistêmicos produzem uma rachadura no narcisismo da humanidade, dando lugar, no novo século, a sistemas robotizados que consumam definitivamente as transformações do século precedente.
O presente trabalho objetiva abordar a lógica algorítmica e a psicanálise a partir da clínica orientada ao real. Distinta da aposta da predição comportamental, que levaria a apreensão da verdade inequívoca do sujeito, a clínica, ao orientar-se ao real, interpõe uma opacidade cuja lógica significante não alcança, restando um troço insondável.
A descoberta freudiana das formações do inconsciente e sua lógica representativa levou a prática analítica ao estatuto do desvelamento do sentido oculto do desejo, manifestação sempre deformada pelo recalcamento. Lacan (1964/1979), em sua releitura de Freud, propõe que o inconsciente se estrutura como uma linguagem, obedecendo as leis da sintaxe. A cadeia significante demonstra a arbitrariedade do significado, aí onde os significantes, que nada querem dizer, por meio do encadeamento, anunciam um sentido.
Miller (1978) sustenta a ideia de que as formações do inconsciente se apresentam como signos a decifrar, sendo toda metapsicologia freudiana lida por Lacan através da lógica do significante. A sua teoria dos discursos pretende, pela via do matema, indicar o modo pelo qual a sequência infinita de significantes se articula a uma causalidade real, sob o qual toda a aparelhagem simbólica não faz mais que gravitar ao redor de um furo.
Miller (1978) acrescenta que não há matema do real. Assim, aquilo que anima a lógica discursiva, fazendo passagem de um discurso a outro, é a entrada no amor, como nos ensina Lacan (1972-73/1985) em seu seminário Mais, ainda…: uma inscrição que traz a ilusão de que a relação sexual que não existe possa surgir como uma miragem. Ao considerar esse pressuposto, o liame social se dá sob a via de uma trama ilusória, já que aquilo que se lê não corresponde ao real, mas a uma aproximação, um litoral, uma marca da qual se pode supor a sua existência. Trata-se da letra, cuja instância é indecifrável, fazendo a passagem de um simbólico delirante e interpretativo a um novo simbólico, esvaziado, cujos significantes não dizem nada, mas veiculam gozo.
Na era da tecnociência impulsionada pelo mercado, Soria (2020) propõe que a lógica algorítmica torna exponencial a ideia de que o real possa ser matemizado, sem restos, absolutamente incorporado a rede codificada. Se o sujeito da psicanálise é aquele dividido em uma escansão entre gozo e significante, sendo propriamente o que a ciência foraclui, resta-nos a questão de que Outro se trata no novo mundo das verdades ditadas pelo novo Deus, o Big Data.
A acumulação, sob a forma de dados, que dá corpo e substância ao Big Data, apresenta alguma similaridade com o lugar do código, ao qual Lacan nomeou como Outro, tesouro dos significantes (FAJNWAKS, 2022). Trata-se do lugar do endereçamento, onde as questões podem encontrar, no código, um trilhamento, um percurso significante. Data e significantes encontram, aqui, equivalência. Entretanto, o Outro da tecnologia se apresenta como um Outro da síntese, hospedando os significados do sujeito de forma inequívoca, já que significante e significado se encontram soldados. Como efeito dessa lógica, há também uma indivizibilidade do sujeito. A cifragem sem equívoco é, então, uma cifragem sem resto, construindo uma tradução matemática dos significantes em dados que se significam a si mesmo. O empreendimento da ciência contemporânea pode ser entendido como uma tentativa d o simbólico recobrir o real, fazendo a relação sexual se escrever, absorvido através dos dados digitais.
Como já apontava Lacan (1971/2009), a ciência não passa de um semblante articulado que o real vem furar. Real que, como aponta Miller (2012), é sem lei e apresenta-se hoje em certa desordem. Não mais equiparado a natureza, o delírio da ciência contemporânea pretende apartar o gozo, tornando o corpo sem substância (BARROS, 2020). A estratégia algorítmica, assim, corresponde a nova roupagem deste afã.
A clínica orientada pelo real, ao considerar os efeitos da presença do analista e a inconsistência do Outro, em contraposição a abolição do acaso proposta pelo projeto civilizatório da humanidade aumentada, constitui uma contraposição política ao achatamento do real sob os códigos massivos. Ao considerar o insondável da transferência e a equivocidade do significante, reconduz o tratamento a causa real e traça um percurso que mira a identificação ao modo de gozo, como um acontecimento de corpo fora de sentido. Sob essa prerrogativa, o ser falante sobreviverá a digitalização do mundo se soubermos nos orientar pelo real. A poesia e as invenções seguem sendo apostas que o dispositivo, já proposto por Freud, permite transmitir. O passe, como aposta, torna-se o nosso algoritmo, não sem considerar o impossível posto em jogo.