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Sonho, Real e política

Salvador Dalí , “La jirafa en llamas”
Salvador Dalí, “La jirafa en llamas”
Glaycianny Pires Alves Lira
Marília Santiago de Arruda

“[…] para que representemos uma realidade é preciso antes sonhar. […] Ou seja, para viver, é preciso sonhar”.

(Ana Costa)

O ano é 2019 e há algum tempo a forte sensação de descrença e instabilidade toma conta da população brasileira e de sua máquina pública. A enxurrada de acontecimentos surreais nos faz questionar o status da nossa realidade. “Será tudo isto um sonho?”

Freud (1900), nos primórdios dos seus textos já considerados psicanalíticos, inaugura um conceito sobre a temática onírica que reverbera até hoje, ele trata o sonho como uma formação do inconsciente e aposta que seu conteúdo é produto da realização de desejos inconscientes que resultaram do processo psíquico primário, com deformações severas exercidas pelo processo psíquico secundário, com a chancela dos trabalhos da censura.

Segundo Freud (1900), pelo viés tópico, o processo primário é caracterizado pelo sistema inconsciente e o processo secundário, avançando através de como ele propõe pensar o aparelho psíquico, enquanto dividido, é descrito como o sistema pré-consciente – consciente; ou seja, há, aí, o aparecimento de um segundo ponto, econômico-dinâmico, de pensar o escoamento de energia psíquica e, portando, o fluxo inconsciente – consciente de pensamentos. Essa manifestação do inconsciente pode ser pensada através de suas formações: os sonhos, os chistes, os atos falhos – o que nos coloca a pensar sobre o sonho enquanto conteúdo direto desse inconsciente, passível de interpretação e, em alguma medida, decifração; sendo, portando, analisável.

Já Lacan (1964) propõe pensar o sonho mantendo uma relação contumaz entre realidade e repetição – uma repetição ordenada enquanto encontro com “o ponto mais cruel” (p. 61), na qualidade de tiquê. Entra, aí, no sonho, a dimensão do desejo, ainda não pensada por Freud, e avançada por Lacan, um mais-além que marca, radicalmente, o lugar da falta primordial – um encontro do Real. É importante, aqui, destacar a diferença, substancial entre realidade e Real, pois, talvez a diferença e o encontro entre esses dois pontos seja onde se localize o fio onde se possa costurar o sonho, enquanto conteúdo do afeto inconsciente, e a política, enquanto manifestação do afeto consciente de um povo, uma cultura. O Real, para Lacan (1985) apresenta-se como algo do inacessível, “aquilo de não cessa de não se escrever” (p.127), o impossível, já a realidade é o nosso material de trabalho cotidiano, os ditames da cultura e as regras sociais compartilhadas, a realidade é onde vivemos (enquanto compartilhada, coletiva) e o Real é o subjetivo, o individual, o UM.

Pensando no sonho como um despertar, como propõe Lacan (1998), ou como uma realização de um desejo, como propõe Freud (1900), e fala-se aqui em desejo sempre enquanto inconsciente, mola propulsora, há, nos elementos do sonho, pontos onde se observa o Real, enquanto impossível, enquanto encontro com a dimensão da falta – sempre à procura de subsídios tamponantes, objetos que suturem o buraco originário – mas também a realidade. No sonho, Real e realidade se misturam, misturam-se desejo e necessidade, queixas e demandas. É no sonho, esse emaranhado entre o Eu e o social, que se pode pensar as relações possíveis entre o campo do inconsciente e sua permanente impulsão à realização do desejo e o âmbito do social, da inserção do Eu na cultura e no que se pensa enquanto política.

Para pensar sonho e política na contemporaneidade, é importante retornar um pouco no que se denomina como politikḗ, do grego, que se relaciona aos negócios do cidadão ou do Estado. Na pós-modernidade, essa dimensão individual da política tomou proporções jamais vistas, o que nos faz pensar na política como um sonho, uma utopia, uma impossibilidade.

A política é a ciência da administração das nacionalidades, a arte de governar os povos, o conjunto dos princípios políticos que regula as relações entre os diferentes Estados (FONTINHA, [s.d.]). É a soma de todas as articulações e acordos que envolvam pessoas, grupos ou organizações – a gerência da sociedade tanto no campo individual como no coletivo; nesse sentido, cabe, aqui, pensar essa constituição da política em sua esfera coletiva, como regulamentadora e fruto dos tentames de um povo.

Freud (1925/1976) coloca a política como uma profissão impossível, para ele, governar é de uma ordem outra, justamente pela questão do coletivo, sendo o sujeito que governa singular, individual. Política e governante, enquanto sujeito, enlaçam-se, então. É um sonho, enquanto utopia, impossibilidade, governar. O sonho enquanto representação do impossível aparece aqui em dupla vertente, como conteúdo do impossível (inconsciente) e como manifestação do impossível de executar da profissão de governar.

Diante do que vivemos no cenário político hodierno, há uma sensação de caos. No entanto, há um sentido para reger uma orquestra deste modo. Seja pelo acúmulo do capital, interesses políticos ou do controle do discurso hegemônico, tudo parece afinado para outros ouvidos. De tal modo, que as definições de política – enquanto regulamentadora das relações – parecem anacrônicas e resvalam nesse encontro impossível de suportar, um encontro com o caos, que pode nos remeter ao encontro com Real,– e como em um sonho, em que ocasionalmente se captura um traço desse Real, disto que carece radicalmente de sentido, como limite do simbólico o impossível da figurabilidade.

É, a partir do ato (im)pulsional de eleger um governante que aponta para o instintivo, dessa rachadura que permite pensar para-além do princípio da realidade, mas adentrar no princípio do prazer, no que é inconsciente e como isso se manifesta que é possível fazer uma ponte com a política, essa política que nos permite pensar no sentindo inverso, do coletivo para o individual,  nos fende enquanto sujeito, nos permite um acesso ao efeito de Real a partir da realidade – que causa, que inquieta.

“É nisso que consiste especificamente a política: ela é um lugar de fratura da realidade” (LAURENT, 2006, [s.p.]). O discurso político atual possibilita escancarar essa fratura em público, não há pudor, é desinibido e aplaudido por sua horda e de mãos dadas com a política neoliberalista deixa claro a que veio: “você para mim é lucro”[1]. Esse discurso não faz laço, a diferença não é suportada na coletividade e o outro pode ser rechaçado:

A diferença, no sentido psicanalítico, ou seja, a diferença apreendida fora de toda perspectiva comparativa, a diferença pura, não é pertinente nesta ótica. Bem mais que isso, ela é odiada, pois ela traz em si a lei do fracasso, ela se enraíza efetivamente no fracasso fundamental do sujeito falante, ou seja, no fracasso da relação. Não é possível falar de diferença – a pequena como as grandes – sem que se introduza, depois se exponha, esta especificidade do falasser que é a não-relação, sexual e geral (BROUSSE, 2014, [s.p]).

Temos, então, um novo modelo de sujeitos, consumidores, em uma época onde tudo é mercadoria, tudo tem um preço, se produz um novo modo de gozo, como coloca Zack (2018). “O significante que Jacques-Alain Miller utiliza para­ representar nossa época, é uma época de arranjo” (BROUSSE, 2003, p.45). Arranjar o coletivo para que haja possibilidade de fazer laço e de suplantar, tamponar a falta-a-ser – delirante; e de acordo com a identificação ao mestre, Real.

Esse impossível que não temos acesso nos faz buscar, sobretudo quando há fissuras na realidade, como a política nos tem permitido ver, e é através do sonho e do trabalho analítico que se torna possível imaginarizar, simbolizar e relatar – trabalhar o que a realidade nos traz de Real.

Lacan (1957) propõe que em sonho, ao chegar perto desse encontro que é impossível, despertamos, mas não em totalidade. Há uma parte que fica submergida, mas há um trabalho, aí, com isso da ordem do (des)encontro. Desse modo, é possível pensar que vivemos a estrutura de um sonho, cifrado, seguimos respondendo a um princípio de realidade onde não se propõe adentrar no princípio do prazer, mas mantêm-se localizado à beira, no raso, sem trabalho, sem dar conta do Real exposto através do discurso. Seguimos anestesiados sonhando, fazendo a roda girar, cabe aqui a pergunta “pai, não vês que estou queimando?” (LACAN, 1964, p. 61) e sem ver, vai se destruindo um país.


Referências
BROUSSE, M. H. O Inconsicente é a política: Seminário Internacional Escola Brasileira de Psicanálise. São Paulo,2003.
BROUSSE, M. H. O amor ao sinthoma contra o ódio da diferença. La cause freudienne, Paris, Navarin, n. 62, 2014. Disponível em: <http://www.encontrocampofreudiano.org.br/2014/07/o-amor-ao-sinthoma-contra-o-odio-da.html> Acesso em 26 ago. 2019.
FREUD, S. A interpretação dos sonhos. (Edição Comemorativa 100 anos) Rio de Janeiro: Imago, 2001/1900.
FREUD, S. Além do princípio de prazer. In: ______. Além do princípio do prazer, psicologia de grupo e outros trabalhos Direção-geral da tradução de Jayme Salomão. Rio de Janeiro: Imago, 1977/ 1920-1922.
FREUD, S. Prefácio à juventude desorientada de Aichhorn. In: FREUD, S. Obras Completas. Rio de Janeiro: Imago, 1925/1976.
FONTINHA, R. Novo Dicionário Etimológico da Língua portuguesa. – Porto: Domingos Bareirra, [s.d].
LACAN, J. O Seminário, livro 11: os quatro conceitos fundamentais da psicanálise. Rio de Janeiro: J. Zahar Editor, 1998/ 1964. LACAN, J. Escritos. Rio de Janeiro: J. Zahar Editor, 1998/1966.
LACAN, J. O Seminário, livro 20: mais, ainda. Rio de janeiro: Jorge Zahar Ed., 1985/ 1972-1973.
LAURENT, E. “El inconsciente es la política”, hoy. Lacan Cotidiano, 518 – Selección de artículos, 2006. Disponível em: < http://www.eol.org.ar/biblioteca/lacancotidiano/LC-cero-518.pdf > Acesso em 28 ago. 2019.
ZACK, O. A psicanálise e a política: Uma descontinuidade discursiva. Conversação. Belo Horizonte, 2018

[1] Em referência a uma canção do grupo Baiana System, de título Lucro descomprimido.
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