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Não fazemos mais [amor] como antes…

Joe Webb - Selected collages - Beach Body Ready
Joe Webb – Selected collages – Beach Body Ready
Glauco de Carvalho Morais
Associado ao Instituto de Psicanálise da Bahia

O mundo não é mais o mesmo e essa opinião é unânime. Não se nasce, vive ou morre do mesmo jeito que antes. A expressiva velocidade em que a tecnologia acontece desde a década de 90 é tão marcante em nossas vidas que para estar “desatualizado” do mundo basta perder a conexão com a Internet durante algumas horas. O homem contemporâneo não é mais o mesmo e suas formas de laço social também não são.

A psicanálise, que sempre está atenta às mutações sociais, não ignora os efeitos do contemporâneo sobre o sujeito, é o que afirma Graciela Brodsky (2013):

O saber que nos ocupa, o saber da clínica, é um saber mutante. A clínica da qual nos ocupamos é sensível ao Outro social: se o Outro muda, muda a clínica, uma vez que a clínica não está dada no real (p.7).

Atento as mudanças sociais, ainda em 1953, Lacan advertiu que se: “deve renunciar à prática da psicanálise todo analista que não conseguir alcançar em seu horizonte a subjetividade de sua época” (p. 321).

A primazia do falo e as consequências psíquicas da ausência da simbolização do sexo feminino levaram Lacan a formular o axioma: “não existe relação sexual” (LACAN, 1973/ 2003, p.454). Essa afirmação parte do pressuposto de que a condição estrutural do sujeito é faltante, que no outro nunca será encontrado aquilo que falta. Sempre estaremos incompletos.

Precedendo o axioma “não há relação”, e seguindo para uma articulação possível diante da condição estrutural do sujeito, Lacan estabeleceu quatro discursos – modalizáveis em suas disposições – que organizariam as relações entre sujeito, Outro, saber e objeto. São eles: Discurso do Mestre, da Histérica, da Universidade e do Analista. O princípio de todo discurso ou laço social é a articulação do campo do sujeito com o campo do Outro, no qual se faz presente a falta, a incompletude. Em 1970, no Seminário 17 – O avesso da psicanálise, Lacan (1969-70/ 1992) menciona uma “mutação capital […] que confere ao Discurso do Mestre seu estilo capitalista” (LACAN, (1969-70/ 1992, p.160). Uma subversão no matema entre o significante e o sujeito, será suficiente para constituir o que ele denominará, em Televisão (LACAN, 1974), Discurso do Capitalista – nesse discurso, o sujeito não se dirige a um Outro – como nos outros – mas ao objeto. Nessa nova forma de laço, a relação com o objeto é privilegiada e promissora, pois extinguiria o mal-estar e faria existir a hipotética completude – a relação sexual. No matema observamos que os objetos mais-de gozar (a) vêm no lugar da produção e, com um frágil anteparo da lógica significante (S1 -> S2), deixa o sujeito à mercê dos objetos ($ <- a). Isso indica que todo discurso que é conectado no capitalismo, deixa de lado as coisas da falta, do amor. (LACAN, 1971-1972).

Ao se referir ao amor, Lacan (1960-61/1992) indica que “amar é dar aquilo que não se tem, a alguém que não o quer” (p.122). Ainda que enigmático, esse axioma lacaniano resulta numa redundância lógica, visto que para amar, o sujeito precisaria reconhecer que há algo em si que falta e que supostamente estaria no outro. Isso quer dizer que se amo, assumo que algo me falta, que sou incompleto, então endereço a possibilidade de completude – atestando que há falta – ao outro que supostamente me completaria, dou aquilo que não tenho – a alguém que não o quer…

A atualidade, reflexo dos avanços tecnológicos e científicos, além de oferecer um consumo desenfreado, responde a um imperativo categórico: goze!, que pode ser lido como um empuxo ao gozo, com ou sem o Outro. No que concerne ao amor, ainda que atualmente haja tentativas do sujeito contemporâneo estreitar seus laços com o objeto, retirando da cena o Outro, sabemos o quão solitário e mortificante é o gozo sem ele (Outro), e como o amor se faz necessário para a constituição do sujeito. Não nos esqueçamos “O que vem em suplência à relação sexual – que não existe – é precisamente o amor.” (LACAN, 1972-73/1985, p.62).

Ainda que só saibamos as consequências da atualidade no futuro, a experiência clínica anuncia o quão um “novo amor”, uma nova forma de laço tem sido fundamental para a sociedade atual, horizontalizada.

O novo amor da pós-modernidade representa um novo tipo de humanismo, uma transcendência laica. Não morremos mais por grandes causas, mas morremos por quem nos toca de perto, por quem divide nossa vida no impossível do vazio das grandes causas […] se antes o amor era tradição e disciplina, hoje é invenção e responsabilidade (FORBES, 2013, p1).

Ainda que não se nasça, viva ou morra do mesmo modo, não deixamos de amar. Mas, certamente, mudamos a nossa forma de fazer par com o Outro e com o objeto de satisfação da pulsão. É esse um dos reflexos do discurso do capitalista, pois, se por um lado ele tende a objetificação, a mortificação e a aniquilação da falta, por outro, ratifica a castração, favorece as novas formas de amar e de lidar com o indizível e ainda dá provas que “a relação sexual não existe” (LACAN, 1973/ 2003, p. 454).


Referências
BRODSKY, G. A loucura nossa de cada dia. Opção Lacaniana On-line nova série – Ano 04 – Número 12 – 2013.
FORBES, J. Um novo amor está no ar. Disponível em http://www.jorgeforbes.com.br/br/artigos/um-novo-amor-esta-no-ar.html Acesso em 15 de setembro de 2020.
LACAN, J. (1953). Escritos. Função e Campo da fala e da linguagem. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editor, 1998.
LACAN, J. (1960-1961). O Seminário, livro 8 – A transferência. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 1992.
LACAN, J. (1969-1970). O seminário – Livro 17 – O avesso da psicanálise. Rio de Janeiro: Zahar, 1992.
LACAN, J. (1971-1972). O seminário – Livro 19 – Ou pior. Rio de Janeiro: Zahar, 2003.
LACAN, J. (1972). “O aturdito”. Outros escritos. Rio de Janeiro: Zahar, 2003.
LACAN, J. (1972-1973). O seminário – Livro 20 – Mais, ainda. Rio de Janeiro: Zahar, 2003.
LACAN, J. (1974). “Televisão”. Outros escritos. Rio de Janeiro: Zahar, 2003.
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