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A pulsão escópica no discurso capitalista e o amor

Giovana Reis Mesquita
Associada ao Instituto de Psicanálise da Bahia (IPB)

Freud (1930/2010) argumentou que desde que nos tornamos bípedes, o olhar adquiriu uma importância maior que a função olfativa. O homem passou a ser um ser escópico.

A própria pré-história da Psicanálise não se furtou de considerar o quanto a pulsão se instala no olhar. Freud (1996) destacou que Charcot devotava ao olhar uma importância na atividade científica que não estava apenas no fato de ver, observar, mas, sim, de ver algo novo.

Depois, os próprios textos de Freud fazem referência à visão, como as cenas primárias, revelando, portanto, que a pulsão escópica (Schautrieb) está sempre em evidência. E declara o quanto era importante que o paciente não visse o analista enquanto estava no divã, principalmente para aqueles a quem a pulsão visual desempenhava na neurose um papel significativo (MEZAN, 1988).

Ao falar em pulsão escópica, colocamos aí a existência de um psiquismo que não se pauta unicamente no somático. Olhar é recorte.

Para François Leguil (1997), o olhar se distingue da visão devido ao fato da palavra colocar uma parcialidade. Olhar, esse verbo transitivo direto, demanda, portanto, um complemento. E o que complementa esse olhar para além da gramática? O desejo.

Olhar é desejar e ao mesmo tempo objeto de desejo. Vimos, em 2022, a empolgação da comunidade científica com o novo telescópio James Webb, e as imagens por ele produzidas estamparam vários sites de notícia. Tais imagens mostram que o olho não vê tudo, mas, como a ciência, aspira a conseguir.

Antelo (2015), em sua tese “A inquietante estranheza en el cine”, afirma que o olho é o órgão do corpo que privilegiamos porque além de instrumento de saber, via pela qual se aprende, ele é também fonte de satisfação, por onde gozamos.

Assim, o movimento da civilização parece ser um progresso em direção a uma expansão do olhar. O artigo de Carvalho (1997) chamado “A saturação do olhar e a vertigem dos sentidos”, diz que nunca antes do século XX se experimentou tamanha saturação dessa pulsão. Para ele, o olhar tornou-se a principal mediação do indivíduo com a realidade, os olhos veem mais em um menor espaço de tempo, afetando radicalmente os modos de ver. Há um aumento da demanda por novidade. Há uma gula do olhar.

As imagens, a superfície, despertam mais o apetite do olho, do que a natureza interior das coisas. O olhar é tributário do mundo capitalista.

O mundo sem lei, de falo esmaecido, sai da ética para uma supremacia do que chamo de uma estética pornográfica, ou seja, de gozo fácil e sem tempo de elaboração: vê, e se conclui.

Nesse cenário, a divisão do sujeito parece não passar pelo outro, pelo desejo do outro; está mais ligada aos ideais do eu e aos constantes convites ao gozo. Com isso, o próprio corpo parece ganhar mais importância. A imagem do indivíduo no espelho é sólida, completa, sem erosões. O olhar está empanzinado de si mesmo.

Um dos destinos da pulsão que Freud (1915/2010) estabelece é o retorno em direção ao próprio eu do indivíduo. No caso da pulsão escópica hoje, a finalidade ativa de olhar parece estar cada vez mais substituída pela passividade de ser olhado. Um exemplo disso é o desenvolvimento de aplicativos de celular, onde as pessoas passam a exibir seus corpos e viram a câmera para si, no que popularmente se chama de self, um modo de fotografar para dentro. Desta forma, segue-se o que Miller (2018) diz: que não há outro no nível da pulsão.

Isso parece uma dificuldade em passar de uma solução imaginária a uma simbólica – já que o simbólico é um registro que se faz para fora, que faz laço. Nesse caso, não se tenta dizer, elaborar, apenas ver.  Um curto-circuito imagético. A pulsão escópica talvez esteja saindo de uma satisfação pelo conhecer para o gozo no silêncio das imagens que tudo tapam. Há uma dificuldade em encarar a castração.

No campo analítico, isso é o que Lacan (2007) chamou de discurso capitalista. Mas diferentemente do conceito do que vem a ser um discurso, esse não barra o gozo, como bem enfatiza Miller (2011). Ao contrário, o sujeito parece estar colado em uma satisfação que não abre espaço para o desejo.

O gozo condescende ao desejo através do amor (Lacan, 2012).  É este que propicia a vivência de um gozo menos fálico, que suporte mais a castração. O amor cobre, supre, o que não há.

Lacan (2010), no seminário “A transferência”, diz que o amor é concebido a partir da noção de falta, de castração. Há, portanto, uma relação entre amor e castração. Ao amor só se tem acesso castrado. Para amar, tem que abrir mão do próprio gozo. Quanto mais castrado, mais se ama.

Para Soria (2018),

a experiência mesma do amor é a experiência de um objeto que se subtrai, que se escapa; e o campo escópico é a dimensão na qual melhor se capta esse fenômeno estrutural. Por isso não é casual que o complexo de castração freudiano esteja ligado ao imaginário, esteja ligado à visão. [… ] a falta está ligada a uma negativização da visão, a falta do imaginário é uma falta de imagem. (p.62).

Ademais, Lacan (1998) coloca o campo escópico como aquele que mais vela a castração, porque o campo visual é o que mais tende a completar a imagem; vide os princípios da Psicologia da Gestalt, da boa-forma.

Então podemos nos perguntar: A pulsão escópica preenche ou erode? Completa a falta ou olha para ela? Pode estar ligada ao amor, e, portanto, à sua falta constitutiva?

Talvez as duas coisas. A pulsão escópica pode estar a serviço do desejo, e não só do gozo, buscando, apesar do que se vê, como aborda Leguil (1997), aquilo que permanece escondido do olhar, que em última instância é a castração.

Quando se assume a castração, o impossível de ver, o monolítico do sujeito se erode, a falta aparece. Algo se perde, e o amor pode aparecer. Como em Lituraterra, Lacan (2003) retoma a metáfora freudiana de que a atividade analítica é mais escultural. É, portanto, mais de retirar do que de acrescentar.

Assim, como a psicanálise é uma atividade baseada no manejo da transferência, que é o manejo do amor, é preciso retirar, encarar a falta para o amor aparecer. Seja em análise ou não. O Eros não se erode quando o sujeito permite se erodir.


Referências:
ANTELO, M. La inquietante extrañeza en el cine. Tese de doutorado. Departamento de comunicação, Universidade Pompeu Fabra. Barcelona, 2015.
CARVALHO, S. L. T. A saturação do olhar e a vertigem dos sentidos. Revista USP, (32), p. 126-155, 1997.
FREUD, S. (1893). Charcot. Edição Standard Brasileira das obras psicológicas completas de Sigmund Freud, v. 3. Rio de Janeiro: Imago, 1996.
FREUD, S. (1914-1916) Os instintos e seus destinos. In: Obras Completas, v. 12. São Paulo: Companhia das Letras, 2010.
FREUD, S. (1930-1936). O mal-estar na civilização. In: Obras Completas, v. 18. São Paulo: Companhia das Letras, 2010.
LACAN, J. (1958). A significação do falo. In. Escritos. Rio de Janeiro: Zahar, 1998.
LACAN, J. (1960-1961) O seminário, livro 8: a transferência. Rio de Janeiro: Zahar, 2010.
LACAN, J. (1962-1963) O seminário, livro 10: A angústia. Rio de Janeiro: Zahar, 2005.
LACAN, J. (1969-1970) O seminário, livro 17: o avesso da psicanálise. Rio de Janeiro: Zahar, 2007.
LACAN, J. (1971) Lituraterra. In: Outros Escritos. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editor, 2003.
LEGUIL, F. Lembrar-se do objeto que vimos, minha alma… In: RIBEIRO, M. A. C. e MOTTA, M. B. DA (Orgs.). Os destinos da pulsão: sintoma e sublimação / Kalimeros – Escola Brasileira de Psicanálise – Rio de Janeiro. Rio de Janeiro: Contra Capa Livraria, 1997.
MEZAN, R. A medusa e o telescópio ou Verggasse 19. In: A. NOVAES (Org.), O Olhar. São Paulo: Companhia das letras, 1988.
MILLER, J.- A. Perspectivas do escritos e outros escritos de Lacan. Rio de Janeiro: Zahar, 2011.
MILLER, J.-A. El partenaire-síntoma. Buenos Aires: Paidós, 2018.
SORIA, N. Nudos del amor. Buenos Aires: Del Bude, 2018.
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