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O Sinthoma como escritura do real

Ivone Maia de Mello
Associada do Instituto de Psicanálise da Bahia, professora adjunta da Universidade Estadual de Feira de Santana
O mais radical, posso dizê-lo para vocês graças a Jacques Aubert, é Who ails tongue coddeau, aspace of dumbillsilly? Se eu tivesse encontrado esse escrito, será que teria ou não percebido – Onde está o seu presente, espécie de imbecil? (Oü est ton cadeau, espèce d’imbécile?)[1]
No seminário que proferiu entre os anos de 1975-1976, em que apresenta o conceito de Sinthoma, Lacan lança mão de uma forma arcaica de escrever a palavra sintoma, para demarcar o que há de singular em sua formulação. No primeiro período de seu ensino, Lacan propõe que o inconsciente é estruturado com uma linguagem; e que o trabalho da análise consiste em fazer passar ao discurso o mal estar, que encontraria alívio ao ser elaborado e localizado no campo simbólico, como indica em seu texto “Função e campo da fala e da linguagem em psicanálise”: “Nada há de criado que não apareça na urgência, e nada na urgência que não gere sua superação na fala” (LACAN, 1998, p. 242). Esse trabalho da análise permanece atual e consiste em fazer passar do registro imaginário, os sentidos fixados de forma especular no campo do Outro, ao deslizamento da significação no simbólico, permitindo ir além da identificação narcísica a partir do corte introduzido pela interpretação do analista. No ponto onde um furo na imagem do Outro retorna como um furo em seu próprio ser para um sujeito, emerge a questão que marca sua pergunta sobre o desejo:
fazer em alguma parte a sutura entre esse simbólico que se estende ali, sozinho, e esse imaginário que está aqui. É uma emenda do imaginário e do saber inconsciente. Tudo isso para obter um sentido, o que é objeto da resposta do analista ao exposto, pelo analisando, ao longo de seu sintoma (LACAN, 2007, p.70-71).
Uma concepção de sintoma como fala endereçada ao Outro, como mensagem cifrada, que se trata de, pela via da fala, desvelar seu sentido. Este sintoma é tomado por Lacan, nesse momento, como “o significante de um significado recalcado da consciência do sujeito […] ele participa da linguagem pela ambigüidade semântica que já sublinhamos em sua constituição” (LACAN, 1998a, p. 282). Sintoma como metáfora, que faz deslizar os sentidos a partir dos significantes mestres para aquele sujeito. O inconsciente simbólico, evidenciado pelos tropeços e lacunas no discurso do sujeito. Mas assim como Freud se referiu em Análise terminável e interminável (1937) ao rochedo da castração, impossível de ultrapassar, como obstáculo ao trabalho analítico; a partir do Seminário 7 o conceito de real se destaca de seu uso aproximado à ideia de realidade, para se referir à Coisa freudiana, Das Ding. No Seminário 10 sobre a Angústia, a marca da separação do Outro deixa um um resto inquantificável, algo que não é da ordem do significante, absoluto, que não se pode resolver e nem dissolver. Muda o conceito de objeto, da série de objetos parciais para agora construir o objeto a, que é um resíduo, um resto de tudo que pode ser nomeado. A angústia como via de acesso ao real, não mediado pela linguagem. (MILLER, 2003) A questão fundamental sobre o ser do sujeito se esvazia, e se mostra em sua inconsistência:
Ele é o elemento que perturba os semblantes identificatórios, pois é a prova de que nenhuma identificação corresponde ao que o sujeito é. Esse elemento é, acima de tudo, concebido por Lacan no segundo momento do seu ensino, como pura consistência lógica (SANTOS, 2006, p.200-201).
Gradativamente, o registro do real e o gozo ganham centralidade em sua teorização em relação à anterior ênfase no simbólico, a partir do significante e seus efeitos. No Seminário 22, Lacan(1974-1975) propõe a teoria dos nós borromeanos e menciona pela primeira vez a orientação ao real, e no Seminário 23 (1975-1976) ele vai falar do sinthoma como uma produção singular, como invenção do sujeito para lidar com sua angústia, o registro real da pulsão, em resposta à invenção freudiana do inconsciente (LACAN, 2007). O trabalho clínico com a palavra não é abandonado, mas exige um mais além do sentido: “A psicanálise como um curto circuito, passando pelo sentido, como copulação da linguagem, suporte do inconsciente como nosso próprio corpo” (LACAN, 2007, p.118). Fazer com que algo desse gozo sem nome possa ser capturado pelo significante, ainda que permaneça como letra de gozo, fora do campo do deslizamento do sentido, permite que algo do insuportável do gozo possa ser reduzido:
Quando fazemos essa emenda, fazemos ao mesmo tempo uma outra, precisamente entre o que é simbólico e o real. Isso quer dizer que, por algum lado, ensinamos a analisante a emendar, a fazer emenda entre seu sinthoma e o real, parasita do gozo. (LACAN, 2007, p.70-71).
Isso que não pode ser posto em palavras e que excede o que é suportável, que faz furo no real, é preciso encontrar uma forma de fazer do sintoma um suporte ao sujeito. O sinthoma cumpre então um arranjo que sustenta algum enlaçamento possível entre os registros imaginário, simbólico e real. Ele exemplifica com os escritos de James Joyce o que é um sinthoma. Em seu uso da letra fora do campo da significação, joga com enigmas e com os sons como propriedades que podem ser isoladas e retiradas de seu contexto linguístico. O exemplo de uma homofonia escrita em língua inglesa, e que dificilmente é percebida no que forma de sons da sua língua (Joyce era irlandês, e Lacan nos informa que o Gaélico, sua língua, é uma língua apagada do mapa, perdida) é sublinhado por Lacan como um exemplo radical de sua apropriação da escrita. Joyce é o próprio sintoma, na medida em que usa o significante como modo de gozo do que Lacan chama de Lalíngua, um balbucio gozoso do som. E é aí que Lacan situa o sinthoma, como uso privado da língua, que cumpre a função de nomear para este sujeito em particular, e para ninguém mais. Para ele, isso se arranja. E isso basta ao enodamento que o sustenta. Ao seu modo: “É nisso que o que diz respeito ao Nome-do-Pai, no grau em que Joyce testemunha isso, eu o revisto hoje com o que é conveniente chamar de sinthoma” (LACAN, 2007, p. 163). O inconsciente se enoda ao sinthoma, o traço unário, singular, e é ao encarnar o sintoma que Joyce escapa a toda a morte possível. Pois é palavra que não se refere a coisa nenhuma. A palavra é a coisa.
Um paciente, citado por Lacan, articula que as falas são impostas. Lacan reconhece nessa articulação um saber psicanalítico, na medida em que todas as falas são impostas, imposturas, como uma espécie de parasita. Após a sensação de que as falas lhe eram impostas, o paciente teve a sensação de ser afetado pelo que ele mesmo chamava de telepatia. Mas diferente do uso corrente do termo, para ele tratava-se de que todo mundo sabia de suas reflexões. Ele escutava algo como “sujo assassinato político” e o tornava equivalente a “sujo assistanato político”. O significante reduzido a uma torção, a um equívoco. Ele mesmo respondia com um “mas…” e algo mais. E o que o atormentava era que todos soubessem sobre essas reflexões que fazia. Ele se exprimia como “telepata emissor”. Não tinha mais segredo, reserva alguma. O que o levou a uma passagem ao ato numa tentativa suicida e à internação.
Neste Seminário, Lacan iguala a pulsão de morte ao impossível de ser pensado, como deriva do sentido, fundamento do real. Mais radical do que a foraclusão do Nome-do-Pai é a foraclusão do sentido pela orientação ao real. Em Joyce, questiona Lacan, essa decomposição permanece ambígua se visava livrá-lo do parasita da linguagem ou se era a própria invasão pelas propriedades fonêmicas – a linguagem como coisa. Que algo de um gozo se articule no inconsciente onde rateia o sentido, isso Freud já havia percebido com o lapso, o chiste: “a linguagem está ligada a alguma coisa que no real faz furo […] a linguagem come o real. “ (LACAN, 2007, p. 31).
Com isso, Lacan se pergunta sobre a função da arte como um quarto nó, um quarto termo a enlaçar os três registros e a permitir alguma consistência atingindo o sintoma: O problema todo reside nisto – como uma arte pode pretender de maneira divinatória substancializar o sinthoma em sua consistência, mas também em sua ex-sistência e em seu furo? (LACAN, 2007, p.38) Em Joyce, Lacan se refere a quando “usamos a linguagem de um modo que vai mais longe do que o que é efetivamente dito”. (LACAN, 2007, p.41) O quarto nó, o Sinthoma, enlaça os três registros (RSI). A resposta assim obtida não diz respeito ao campo do sentido, do discurso; e nem tampouco ao corpo, mas como ressonância que de fora do corpo faz acordo com a linguagem: “O sinthoma é o que permite reparar a cadeia borromeana no caso de não termos mais uma cadeia” (LACAN, 2007, p. 90) Joyce se serve da linguagem para gozar, e ao tomá-la como letra acaba por localizar algo do que pode produzir efeito de nomeação para ele mesmo. A escritura, termo derivado do ato de dar forma escrita a um ato, como quando registramos a compra de um imóvel, equivale a essa operação de nomeação pela via da letra de gozo. Algo de uma localização se produz, mesmo que pela via de uma borda que não se insere no campo do sentido, mas que produz efeitos de apaziguar uma parcela da angústia.