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“(Um)demia”: novas lições de um despertar?

Eugenia Loli - Pleiadian Surfer - 2016
Eugenia Loli – Pleiadian Surfer – 2016
Pauleska Asevedo Nobrega
Participante da Escola Brasileira de Psicanálise – Seção Nordeste

A alegoria mítico-religiosa do pecado original de Adão e Eva, pode muito bem ilustrar o paradigma da incidência do gozo no coração do laço social, tema tão caro à Lacan. Na medida em que também denuncia a falácia da existência de um paraíso possível, a modalidade de gozo de cada ser falante torna a subversão muito próxima da constituição humana ou mesmo, o seu fundamento.

Os riscos fatídicos num contexto de pandemia convocaram nos confins do simbólico, uma mutação no laço social a partir da interdição de um modo de gozar já conhecido em seu empuxo ao ilimitado (BASSOLS, 2017). E aqui nos cabe, sobretudo, também observar os limites desse simbólico diante da radicalidade de uma descontinuidade. Quando a finitude tem sua nuance apocalíptica, de rachadura, mas também de forçamento. Através do semblante de superioridade num universo heterogênio, o homem domina, coloniza, explora e invade para gozar de propriedade, imerso na armadilha de que tudo o que já lhe está dado é seu, portanto, inesgotável, independentemente dos seus atos. Sem se dar conta de que, se a crença na imortalidade do gozo se sustenta, é apenas fantasmaticamente ou delirantemente, encobrindo assim a sua ferida narcísica, pois a vida, o desejo e o gozo somente se articulam a partir do que não se pode inscrever no real, como diria Bassols (2017).

Nos diz Lacan (1964), que o Nome-do-pai sustenta a estrutura do desejo como da lei, mas a sua herança, a qual nos designa, é o seu pecado. Quer dizer, a força da transmissão de um gozo embaraçador que está num para-além da lei, é sempre imperativa, ao passo que esse império é desprovido de todo e qualquer aparato simbólico. O coronavírus, apesar de não ser um corpo falante, enquanto vírus, não é sem os corpos e, tem posto o falante dos corpos em ação. Diz-se que a sua mensagem é sobre um novo normal. Se esse fenômeno introduziu uma barra no cerne do laço social, aquela que divide ou separa, tempos, espaços adversos e, sujeitos, consideremos o seu para-além, muito mais do que apenas a sua face de uma interdição subjetiva. A profecia nesse aspecto traz algo de patético, além de mortífero e, põe em causa uma questão estrutural: a debilidade humana.

Para Lacan, essa debilidade é, antes, a sua interpretação para a precariedade do aparelho de linguagem estancar simbolicamente o gozo como tal e seus efeitos. Para a psicanálise, a debilidade não é tratada como uma deficiência cognitiva, mas como uma questão ética da relação do sujeito com o seu gozo, com o Outro e com o falo no tratamento do real pela linguagem.

Segundo Márcia Rosa (2008, [s/p]), baseando-se nas leituras que faz de Platão, Ernest Jones e Hamlet na obra de Shakespeare, Lacan elaborou a debilidade a partir de três formulações do aparelho da linguagem frente ao real: “como inibição intelectual, como incapacidade de colocar o desejo do Outro em questão e, finalmente, como incapacidade de instalar-se solidamente em um discurso”.

Pois bem, a pandemia nos convoca a um estado de guerra, no limite das trincheiras de gozo e nos põe à prova eticamente. Nesse sentido, as formulações postas por Lacan em relação à debilidade poderiam orientar a leitura desse momento? Como seria pensá-lo um terreno fértil para um esforço de mobilizar essas defesas? De alguma maneira, a desinibição intelectual como uma revisão da própria relação com o gozo que é sempre autoerótico, mas que repercute no social; a desfamiliarização do desejo do Outro, e, a posição não vacilante do sujeito em um discurso, como um ato desejante, serviriam a alguns despertares na lida com o real.

Um pensamento adequado enquanto pensamento, no nível em que estamos, evita sempre – ainda que para se reencontrar em tudo – a mesma coisa. O real é aqui o que retorna sempre ao mesmo lugar – a esse lugar onde o sujeito, na medida em que ele cogita, onde a res cogitans, não o encontra (LACAN, 1964, p. 55).

Para-além da dimensão de interdição, há o real no horizonte dos despertares da debilidade constitutiva. A China derrubou as suas muralhas, contrariando a tendência do levantamento de muros de alguns líderes políticos no século XXI. A ideia de unificação da antiga Babel, foi decodificando os discursos que pulverizavam um certo real dos liberalismos, em sua pluralidade, como diria Laurent (2019). A saber, os excessos do consumismo do economicamente correto, do welfare state do homem moderno que separa os corpos através de um em-si-mesmamento, cada qual com o seu micro-empreendendorismo. O capital lançado ao zênite social em vôos cada vez mais sem fronteiras, não impediu a errâncias dos corpos mortais, denunciando a instauração já anterior de uma sonífera ilha, onde jazem aqueles adormecidos na solidão dos um-sozinhos.

No dilema de uma batalha inédita contra o inimigo invisível, como assim fora chamado por alguns chefes de Estado, o que o vírus viria a encarnar de obsceno? Se a pandemia evocou o fenômeno da contaminação que ocorre mundialmente, não quer dizer que ela tenha feito dos humanos vulneráveis ao vírus, todos irmãos (ainda que todo romance familiar não passe de uma debilidade coletiva). Pelo contrário, o modelo de um gozo segregador tem operado ativamente no campo social (MACEDO, 2020), para fazer existir o Outro que não existe, seja através da ciência, da economia, da igreja, da política, da saúde, etc.

E é quanto ao que os significantes mestres de cada época mobilizam em termos pulsionais, que a psicanálise sempre esteve advertida, pois diante da inadequação da palavra à coisa, o real não pode senão mentir a quem se destinam esses significantes, já que não cessa de não se escrever, fazendo da verdade uma utopia sempre capenga. Por isso, segundo Miller (1996), o termo despertar é uma das nomeações de Lacan para o real enquanto impossível, o que não isenta da responsabilidade para com essa fábrica de discursos que comportam os semblantes projetados enquanto verdades universais de uma época.

Com base em Lacan (1962-1965), na relação da angústia com o desejo do Outro, o êxito da inibição, nesse caso, seria paralisar, impedir o movimento ou não enxergar a dificuldade, numa evitação da angústia, logo, do desejo que daí poderia advir. Quando está em exercício persuadir o outro de que ele tem o que pode nos completar, jamais está em causa o “eu não sei” irredutível que aponta para a falta, diria Miller (2011). A inibição intelectual a nosso ver, poderia ser uma das respostas ao ideal totalitário forjado no Outro social, de modo não dialetizável, um verdadeiro confinamento.

A clínica nos tem interpelado de forma pragmática: quanto custa uma vida?  No contexto atual, o abismo da crise financeira indica que a moeda já não tem a sua potência de mais-valia quando concorre com a vida humana, ao menos não, quando é esta que está em crise. Se não se tem uma vida para ser vivida, para quê moedas? Elas perdem o seu sentido ou, agora mais do que antes, revelam a sua dimensão de non sense. Quando a economia numa sociedade passa a ser obrigatoriamente revisada, o que dizer das classes sociais? O que dizer do invisível e indizível dos guetos segregados em castas de valor? No Brasil, em sua particularidade, com essa crise desvelam-se outras crises, como o parasitismo do Estado em relação ao povo brasileiro, lançando-o ao desafio de uma escolha impossível: ou a vida ou o capital. Mas a especulação financeira é acéfala, objetal, fetichista, segundo nos ensina o marxismo, na medida em que impõe uma lógica da sobrevivência, da mercadoria fora do circuito de trocas (MARX, 1867/ 2013).

Uma vez que a morte no horizonte do ciclo da vida humana está para todos, por outro lado, não temos visto que diante do vírus, somos todos mortais. Ele não nos põe num mesmo barco quando na condição de mortais, atinge a uns e não a outros, escolhidos para não morrer. A fantasmagoria do capital inflável, assalta o ser falante e sequestra o desejo numa onda apocalíptica que antecipa o fim. Na ausência de uma política em respeito à condição de que se esteja vivo para se gozar dela, da vida, caberá a cada um, de soslaio, questionar-se sobre o invisível, cuja alienação significante impõe simulacros e avatares de uma verdadeira pandemia de Outros. “Ora, ocorre que o significante 1 tem a virtude de adormecer. Adormecer é o feito primário de todo discurso, e isso vale igualmente para o analista quando ele se abandona à escuta de seu paciente, à hipnose ao avesso” (MILLER, 1996, p.  103).

E, então, à serviço da psicanálise, inserir a subjetividade, diz Lacan (1962-1965) compreendida por ele freudianamente: “O que o Outro quer de mim?” (p.14). É fundamental, não para atender prontamente a essa demanda, mas para questioná-la sob a ética do despertar do desejo, desfamiliarizando-se dela e dos discursos múltiplos de sentidos com seus imperativos de gozo segregacionistas. Num mundo onde a loucura é generalizada (pan), no nível em que a debilidade mental é o status constitutivo do parlêtre através da mobilidade singular dos seus modos de gozo, como afirma Miller (2011), logo, não haveria possibilidade de um retorno à normalidade, essa que nunca existiu.

A psicanálise insiste sobre a avaria dos discursos sociais, quando no discurso analítico engendra o desejo do analista à serviço do bem-dizer; no ensaio do indizível frente à obscenidade. Em seu exercício subversivo, ao levar em conta o mistério do corpo falante para além da ameaça viral sobre a matéria, o analista aponta que o real mente para todo o mundo e que por isso, a verdade é mentirosa sem exceções, no nível em que todo o mundo está louco, ou seja, débil. Perceber a contingência do modo de gozar, captado como fora do sentido, não diz respeito à contingência do vírus – se bem que poderá advir dela; mas do Um, onde o Outro não faz mais cópula. A presença do analista é o que faz borda separadora do universal, preservando a elucubração singular de saber que cada um pode fazer sobre a sua parcela de real. Que ateste com a sua presença o encontro com o real, a debilidade singular de cada um, mesmo quando o imperativo é de que os corpos estejam de fora. Fazer um corpo é sustentar o que há de subversivo na irrupção do caos, não perdendo de vista que o analista é uma manifestação do inconsciente. E, serve ainda de inspiração do duro desejo de um despertar não-todo fálico. O respeito à análise, não estaria em normatizar ou educar o fora do sentido do gozo cooptado dos discursos que hipnotizam ou fazem dormir, mas, ao cumprir com a sua “[…] função de escandir o encontro sempre faltoso com o real, aquele se passa entre sonho e despertar” (MILLER, 1996, p. 105).

Ir além do delírio ou do sonho, em certa medida sempre catastrófico na loucura de cada um, diz do consentimento do analisante em se aproximar daquilo que a princípio, nada quer saber, para formular a sua diferença absoluta. O sonho da borboleta de Tchuang-tsé[1], traz o vazio de sentido frente ao dilema de saber evocado pelo real, quando ele não sabe se, enquanto homem sonhara que fosse uma borboleta ou se, enquanto uma borboleta, sonhara que fosse um homem. Para a psicanálise entre homem e borboleta, há que saber-se extrair uma diferença singular num oceano de debilidades. Assim, a pandemia poderia dar lugar ao agenciamento do Um, com o que a psicanálise preza da relação do campo uniano com o não-todo? Haveria lugar para a “(Um)demia”?


Referências
BASSOLS, M. Lo feminino, entre centro y ausência (1a ed.). Olivos: Grama Ediciones, 2017.
LAURENT, E.  “Esta es la época de los líderes autoritários e inconsistentes”. La Nation, por Fernando García, 2019. Disponível, em: <https://www.lanacion.com.ar/opinion/biografiaeric-laurent-esta-es-la-epoca-de-los-lideres-autoritarios-e-inconsistentes-nid2317365> Acesso em 01 de ago. 2020.
LACAN, J. (1964). O Seminário, Livro 11: os quatro conceitos fundamentais da psicanálise. Rio de Janeiro: Zahar, 2008.
LACAN, J. (1962-1963). O Seminário, Livro 10: a angústia. Rio de Janeiro: Zahar, 2005.
MILLER, J.-A. Sutilezas analíticas: los cursos psicoanalíticos de Jacques-Alain Miller. Buenos Aires: Paidós, 2011.
MILLER, J.-A. Matemas I. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Ed., 1996.
MACÊDO, L. F. de. A biopolítica da pandemia. Correio Express Extra. Rev. Eletrônica da Escola Brasileira de Psicanálise. 2020, 26 mar., n.5. Disponível em: <https://www.ebp.org.br/correio_express/2020/03/26/a-biopolitica-da-pandemia/?highlight=luc%C3%ADola>. Acesso em 09 nov. 2020
MARX, K. O capital: crítica de economia política. Livro I: O processo de produção do capital. Tradução de Rubens Enderle. São Paulo: Boitempo, 2013 [1867]. Disponível em: <www.academia.edu /37390110/Marx_O_capital_Livro_1_Boitempo_>. Acesso em 09 nov. 2020.
ROSA, M. Lacan e a debilidade mental de Platão e Ernest Jones. Psicol. rev. (Belo Horizonte) [on-line]. 2008, vol.14, n.2, pp. 37-46. Disponível em: <http://pepsic.bvsalud.org/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S1677-11682008000200003>. Acesso em 09 ago. 2020.

[1] Filósofo taoísta chinês, do século IV a.C, autor da conhecida fábula do sonho da borboleta, já citada por Jean-Claude Carrièrre, Jorge Luís Borges e Raymond Queneau.
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