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Medicalização da vida e do sofrimento humano, o que pode a Psicanálise frente à pílula?

Josué Alves
Aluno do curso de Teoria da Psicanálise de Orientação Lacaniana (TPOL – IPB)

A partir da minha prática enquanto psicólogo, em uma instituição de saúde, na condição de Residente em Saúde da Família e com um olhar orientado a partir da Psicanálise, observo o quanto os usuários adscritos nessa referida instituição, vem em processo de adoecimento psíquico. Esses chegam ao consultório, relatando uma série de sintomas como fobias, medos, sentimento de angústia, taquicardia, sensação de mal-estar e aperto no peito, e outros com o diagnóstico médico de ansiedade generalizada. Trata-se, de uma instituição de saúde, qual perdura o discurso da ciência, pautada na ética do cuidado, da reparação e adaptação.

Em alguns casos, referem agravamento dos sintomas após período da pandemia que atravessamos recentemente, onde houve perdas, mortes e isolamento social. Ao relatarem tais sintomas, questionam imediatamente qual medicação devem fazer uso para alívio dos mesmos, ou ainda se podem continuar a fazer uso do psicofármaco receitado por médico clínico. Volto-lhes a questão, e lhes digo que minha pílula são palavras e silêncio.

É nesse momento que lhes ofereço a escuta e, solicito que falem o que vier a cabeça, ainda que pareça absurdo; ali está autorizado a dizer, sendo resguardado o sigilo profissional. São relatos de angústia, de crises existenciais, inseguranças diante das fases da vida, que os mesmos atravessam; outros com relatos de sobrecarga, nos afazeres do dia a dia, no cuidado com a família, e uma insistência naquilo que se repete, e não cansa de se inscrever. A angústia é certa.

Em Lacan, o sujeito se angustia quando a falta, falta; uma vez que essa dá sustentação ao desejo. Para Lacan a angústia é o afeto que não engana, sendo que nessa, o sujeito está preso nas redes do objeto parcial, núcleo organizador de sua fantasia, se sente animado por um desejo, ao qual a falta não parece sequer corresponder (Kaufmann, 1996). É nessa não correspondência entre desejo e falta que Lacan situará o “ponto de angústia”. Lacan (2005) toma a angústia, como um sinal ante um perigo determinado: o encontro com o desejo do Outro.

Segundo Besset (2002) a angústia, fisgada pelo discurso médico, torna-se facilmente objeto de medicação. De outro lado, e bem distante de tal discurso, a psicanálise, ao invés de tentar extirpar a angústia do sujeito, a acolhe, e busca desse um saber fazer com isso. A angústia então nada tem de patológico, apesar de trazer para o sujeito que a experimenta, um sofrimento que pode adquirir proporção insuportável. Portanto, é do acolhimento de sua presença e não de sua cura, que se trata na psicanálise (Miller, 2001).

Por outro lado, há um imperativo social contemporâneo acerca do dever de ser feliz. Buscando tamponar a falta, estrutural e constitucional, do sujeito. Logo, há uma defesa diante da angústia humana ao buscar tamponá-la, seja com o uso de medicamentos, seja com o surgimento de novos sintomas atuais, como a compulsão por compras, compulsão alimentar, entre outros. Para Freud (1976), não há somente o imperativo de felicidade ditada pelo programa do prazer, mas também o encontro com o destino da pulsão de morte que se exprime pelo ”desperdício de grandes quantidades de energia que poderiam ser empregadas para melhorar o destino humano”. (p. 23)

Nesse imperativo de felicidade, como traz Gonçalves (2008) “ter de ser feliz e não poder ser triste, são dois lados do mesmo imperativo”. Diz a autora:

Ao lado desse, o vazio intrínseco ao ser feliz com que este vazio que para muitos é insuportável, fosse preenchido tanto com a religião, quanto com o consumo ou com a droga. A indústria farmacêutica entra para “sanar” isso, com um papel na chamada “medicalização do sofrimento” humano contribuindo para essa recusa ao afeto da tristeza, que faz parte da subjetividade. É uma forma de mascarar os sintomas e preservar o sujeito de se haver com eles (GONÇALVES, 2008, p. 66).

Desse modo, quanto mais se adere a tal discurso, o qual promete a imediata eliminação do mal-estar humano como se fosse essa a direção da cura, mais há um distanciamento daquilo que move o sujeito em direção à vida. É sabido que o sujeito sabe mais de si do que a pílula. Contudo, ao medicalizar o sofrimento, o que ocorre é uma não responsabilização por aquilo que lhes atravessa. A responsabilidade logo lhe é subtraída, não há uma implicação subjetiva em sua queixa, em sua dor de existir.

O psicofármaco seria então uma resposta rápida e curta ao sujeito, diante da sua angústia e mal-estar, inerente à condição humana. Seria outro modo de dizer que, nos moldes contemporâneos não teria espaço para a tristeza e para o mal-estar. É preciso antes extirpá-lo, afastá-lo; uma vez que ainda há resquícios do biopoder, da ordem médica. Contudo, há algo que tropeça no discurso da ciência. Aquele que consome é consumido, tornando-se também objeto de consumo. E o que se vê, são sujeitos cada vez mais deprimidos, angustiados, e consumidores de psicofármacos, não sabendo o que fazer com aquilo que lhes é de mais singular.

A Psicanálise fundamenta-se no uso da palavra. Não se trata, portanto, de uma crítica ao uso dessa classe de medicamentos, mas sim do seu mau uso. Sendo que nesse, há o apagamento do sujeito e suas questões, mortificando-o. Com isso, no discurso médico, ao sujeito não lhe é dada a voz, sendo que nesse há um saber que lhe antecede, com respostas pré-fabricadas a questões subjetivas, que estão para além da ordem médica. A Psicanálise por sua vez, vai à outra direção. Essa vem dar voz ao sujeito para então, encontrar novos caminhos de vida.

Para Freud, há um modo de gozo particular a cada sujeito e isso lhe é único. Portanto, quando se abre a escuta encontra-se a possibilidade de criar novos caminhos. Se por um lado, a medicina propõe a igualdade entre a verdade e o saber, ignorando o sujeito e suas questões subjetivas; por outro, a Psicanálise privilegia o sujeito e seu sofrimento, fazendo-o falar sobre o que lhes faz sofrer; não pretendendo com isso a felicidade, nem tampouco a adequação as estruturas sociais, mas antes, encontrar algo de singular em seu modo de gozo. Para Gonçalves, et al. (2008, p. 65) “não cabe à psicanálise se submeter à ditadura da felicidade”.

Desse modo, o que pode o analista, frente a medicalização da angústia e do sofrimento? Ou ainda, o que pode a Psicanálise frente à pílula? A análise é em si uma experiência de significação, um modo de operar sobre os significantes, que marcaram a vida do sujeito. Dito de outro modo, um ressignificar de histórias. A Psicanálise, diferentemente da medicina que deseja extirpar o sintoma do sujeito, busca desse, um saber fazer com isso, ao implicá-lo naquilo que lhe ocorre e no seu modo de gozo. É encontrar outra direção, mais criativa para sua existência. Para Vieira (2008):

O psicanalista pode propor algum caminho alternativo? Sim. O psicanalista o busca no mundo de coisas que gravitam em torno de nós, mas que, por não se encaixarem, ficam ali, praticamente invisíveis, na condição de figurantes, de nosso cinema pessoal. Quando na cena principal, é preciso lidar com o Outro da angustia, pode ser útil, convocar todos para que cada um conte sua historia. A análise ao invés de buscar livrar o sujeito do sintoma, vai lhe dar m lugar, faze-lo falar. Ao Outro da angustia diz-se algo como: “Com você, posso aprender sobre mim” (VIEIRA, 2008. p. 37).

O convite do analista ao sujeito para contar sua história pessoal, é um recontar caminhos, percursos, trilhas. É um ir e vir, é um refazer-se diante daquilo que lhe causa horror. É encontrar algo de singular diante do caos que lhe atravessa. A angústia funciona então como uma bússola orientadora ao desejo. Dando ao sujeito a possibilidade de um outro espaço, um novo lugar, uma nova posição mais digna aquele que se atreve a fazer a travessia. Fico com as palavras de Rubem Alves quando diz “ostra feliz não faz pérola”.


Referências Bibliográficas
BESSET, V.L. Angústia. São Paulo: Escuta, 2002.
FREUD, S. Edição Standard Brasileira das Obras Psicológicas Completas de Sigmund Freud. Edição Standard Brasileira. Rio de Janeiro: Imago, 1976, 24 vols.
FREUD, S. Inibição, sintoma e angústia. Edição Standard Brasileira das Obras Psicológicas Completas de Sigmund Freud, vol. XX. Rio de Janeiro: Imago, 2006.
FUENTES, M. J.; VERAS, M. (Orgs). Felicidade e Sintoma: Ensaios para uma psicanálise do século XXI. Rio de Janeiro: EBP; Salvador, Editora Corrupio, 2008.
GONÇALVES, N; HARARI, A; SANTIAGO, J. “A Felicidade na cultura”, em Felicidade e Sintoma: Ensaios para uma psicanálise do século XXI. FUENTES, M. J. VERAS, M. (Orgs.). Rio de Janeiro, pp. 57-69.: EBP; Salvador, Editora Corrupio, 2008.
KAUFMANN, P. Dicionário Enciclopédico de Psicanálise: O legado de Freud e Lacan. (trad.) Vera Ribeiro, Maria Luiza X. de A. Borges. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editor, 1996.
LACAN, J. O seminário. Livro X: A angústia. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 2005.
MILLER, J. A. Um real para a psicanálise. Opção Lacaniana. Rio de Janeiro, n 32 p 15-8, dezembro, 2001.
NUNES, Gresiela. Um percurso de nomes, objetos, angústia e satisfação. Opção Lacaniana online nova série. Ano 3. Número 8. julho 2012.
VIEIRA, Marcus André. Restos: Uma introdução lacaniana ao objeto da psicanálise. Ed. Contra Capa, Rio de Janeiro, 2008.
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