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O que faz o analista com o amor que en-laça?

Maya Rodrigues
Associada ao Instituto de Psicanálise da Bahia (IPB)

No texto “A Direção do Tratamento e os Princípios do seu Poder” (Lacan, 1954), Lacan critica os pós-freudianos sobre a exigência do analisante identificar-se ao analista no final da análise. Esta posição a meu ver convoca os analistas à política do falta-a-ser.  É sabido que “no princípio era o amor, isto é, no começo da experiência analítica foi o amor” (Lacan,1960/61, p.12) e que o analista exerce um fascínio sobre o analisante. Para a psicanálise, esse encontro é movido pela transferência na qual ocorre uma “economia no processo analítico, há um capital que gira: o analisante paga sua cota com seu falar livremente e o analista paga a sua cota com sua pessoa e com seu dizer, na medida em que interpreta”. Entretanto, essa crítica de Lacan abre a seguinte questão: qual o lugar das identificações neste cenário psíquico amoroso onde o analista é colocado como o amado?

Com relação às identificações trazidas a análise pelo analisante, Freud, em suas primeiras inserções ao tema, relaciona-as aos mecanismos da afetividade. No primeiro momento da elaboração teórica, a identificação ocorria a partir da incorporação de traços de outros numa dinâmica afetiva e com o avanço de suas pesquisas novos elementos surgiram. Em “Psicologia das massas e análise do eu”(FREUD, 1920/1923), aparecem conceituadas três formas de identificação: a pré-edípica com incorporação do objeto, denominada canibal ou fase oral; a identificação ao sintoma da pessoa amada que tem como exemplo a tosse de Dora (aqui Lacan rearticula esse modo como primordial na noção de traço unário); identificação ao ideal do eu ao colocar-se no lugar do Outro, produzindo identificações coletivas, tais quais ocorre no cerne da religião, política.

Ao retomar essas três vertentes, bem como o conceito freudiano de Einziger Zug, Lacan afirma que os significantes são acolhidos a partir de uma identificação originária com o traço unário. O traço unário é pensado como sendo a forma mais rudimentar do significante, o suporte do significante, o traço onde firma a identidade do significante consigo mesmo. Como dito pelo próprio Lacan,

(…) traço unário é o que lhes digo, a saber, a diferença, é a diferença não somente que suporta, mas que pressupõe a subsistência ao lado dele, de 1+1+1… (um, mais um, e ainda um) o mais marcando ali apenas para marcar a subsistência radical da diferença. (LACAN, 2003, p. 176)

O traço unário, portanto, é o que permite a formação da cadeia significante a partir da diferença, é um elemento estruturante.  Os significantes são acolhidos no vazio do traço unário, no vazio da diferença radical, e atuam de forma sincrônica e simultânea na elaboração daquilo que se desvela numa cadeia significante. A partir dessas interlocuções, trata-se de interrogar qual a relação do traço unário com aquilo que faz laço entre um analista e um analisante?

O que faz laço, desde sua descoberta por Freud, é a transferência. O sujeito em análise chega à “cena amorosa” com seu Eu, lugar de identificações, com suas fantasias, repetições, fixações libidinais, resistências, demandas de amor, todos tecidos com a mesma substância: a transferência. Do lado do analista, por outro lado, espera-se uma oferta de escuta com seu falta-a-ser, lugar de castração, o que requer estratégias e táticas para exercer com neutralidade o manejo da transferência.

Desde o primeiro caso clínico Anna O., o amor sempre esteve presente na psicanálise. Atendida inicialmente pelo médico Joseph Breuer foi encaminhada a Freud, em vista da impossibilidade daquele médico suportar o tratamento em razão do amor a ele “endereçado”.  Assustado abandona o caso, despertando em Freud o interesse pelo tema, o que faz descobrir adiante em sua clínica, o amor transferencial. Não sem razão, Freud escreve um texto intitulado “Recomendações ao médico que exercem a psicanálise”(FREUD,1912).

A transferência atravessa aquilo que nos sustenta enquanto analistas, enquanto lugar de permanente formação: o laço social. Nos textos “A dinâmica da transferência” (FREUD,1912) e “Recordar, repetir e elaborar” (FREUD, 1914) a transferência é estabelecida com a compulsão à repetição e com a resistência, duas faces da mesma moeda. Para Freud, transferências são reedições, reproduções de afetos e experiências infantis, vivenciadas com pessoas significativas da vida do sujeito, deslocadas para a pessoa do analista.

Ao colocar uma lupa, observa-se nas entrelinhas enganadoras do discurso do analisante Um traço que se repete ao longo da sua história que o faz queixar-se. Portanto, ao procurar um analista credita a ele um saber sobre seu sofrimento que o atormenta, entretanto, é pela via do inconsciente que a transferência ocorre, a partir desse traço. Ou seja, na análise o analista porta um significante que se identifica ao Outro do passado do sujeito. Encontra-se aí coagulado o que o sujeito espera do Outro a quem se dirige, evidenciando as marcas do significante mestre, enredado na cadeia dos significantes. É neste devir que o analista atua, interpreta, intervém, com sua pessoa, com seu quinhão.

Lacan (1954), entretanto, adverte que a sua atuação limita-se à subjetividade do sujeito em análise e que embora o analista e analisante participem da transferência, não ocupam o mesmo lugar no processo, ao contrário. O analista deve ocupar o lugar de objeto a, causa de desejo. E no final de uma análise, diferente da proposta dos pós-freudianos, o analisante há que identificar-se com seu ser, em suas idiossincrasias e esquisitices, e que a análise produz menos gozo, mais vida e capacidade de criar!

A identificação ao analista, portanto, não é o referencial que se utiliza para falar do fim de análise. A intervenção do analista visa a diferença absoluta enquanto singularidade do significante em cada sujeito. Lacan ao escrever em 1954 “A Direção do Tratamento e os Princípios do seu Poder “, deixa luz para os que andam na escuridão e suas recomendações, a meu ver, permanecem vigentes. Uma delas, é que o analista não deve colocar-se como oferenda para o analisante e que seus sentimentos só têm um lugar nesse jogo: o de morto.


REFERÊNCIAS
FREUD, S. Observações sobre o amor transferencial (Novas Recomendações sobre a técnica da psicanálise III) 1915/1914. In.: __. O caso Shcreber, artigos sobre a técnica e outros trabalhos (1911-1913). RJ. Imago, 1996, p. 177-188. Edição Standard Brasileira das Obras Completas de Sigmund Freud, vol.12.
__________. Recordar, repetir e elaborar. (Novas Recomendações sobre a técnica da psicanálise III) 1915/1914. In.: __. O caso Shcreber, artigos sobre a técnica e outros trabalhos (1911-1913). RJ. Imago, 1996, p. 163-171. Edição Standard Brasileira das Obras Completas de Sigmund Freud, vol.12.
LACAN, J. “Direção do Tratamento e os Princípios de seu Poder”. In Escritos. Ed Jorge Zahar, 1998, Rio de Janeiro, pg. 591-649
_________ Primeiras Intervenções sobre a questão das resistências. In.: O Seminário 1: Os escritos técnicos de Freud. Texto estabelecido por Jacques-Alain Miller, Zahar, RJ, 2009, pg. 15-30.
_________ Seminário livro 9 – A identificação. Jorge Zahar, 1961/1962. Rio de Janeiro.
  APARICIO, S. Sob transferência, laço e discurso analítico. Stylus (Rio J.) [online]. 2015, n.31, pp. 19-28. ISSN 1676-157X.
ESTARMINO, A. Sobre identidade e identificação em psicanálise: um estudo a partir do Seminário IX de Jacques Lacan. Revista do Departamento de Filosofia da Universidade Federal e da Universidade Federal de São Carlos, Curitiba, vol.13, nº 3, p. 231-249, dezembro de 2016.
FONTE, M.L.A. Amor, transferência e desejo. Trabalho apresentado na II Jornada Freud- lacaniana. Recife, 1997, publicado nos Anais da II Jornada Freud-Lacaniana. Recife, 1998.
SALLES, A.C.T. Amor de transferência: o que resta no final da análise? Reverso. Belo Horizonte, ano 41, nº 77, p. 31-38, jun.2019.
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