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O sangue como vestígio apagado em As bodas de Fígaro: referência lacaniana do Seminário 16

Rogério Paes Henriques
Associado ao Instituto de Psicanálise da Bahia (IPB)

Referência lacaniana

O capítulo “Saber gozo” de O seminário, livro 16 (LACAN, 1968-1969/2008) inicia-se com uma crítica a certo “sujeito pulverizado” pela vulgata analítica, isto é, certa redução do sujeito da psicanálise a sua dimensão simbólica – redução essa, de algum modo, promovida pelo primeiro ensino lacaniano. Para dar seu passo além, Lacan propõe então uma retomada da questão da estrutura do sujeito. Nesse sentido, para se definir o sujeito, parte-se efetivamente do significante: “O significante é aquilo que representa um sujeito para outro significante” (Ibid., p. 300). Isso havia sido matematizado por Lacan de uma maneira muito simples: S1 => S2; esse par de letras afetadas por uma ordem e por uma seta que os vincula em sua diferença advinda do sistema da linguagem (A). Todavia, tal sistema é furado e Lacan designa “em-fôrma de A ao objeto (a) que lhe introduz um furo” (Ibid., p. 301). E prossegue: “esse a […] é o próprio sujeito […] que no caso é S1” (Ibid., p. 302). Há uma alteridade primária do significante, que Lacan designa “vestígio”, expressa clinicamente no sujeito em análise por uma estranheza particular. “O vestígio passa para o em-fôrma de A de acordo com as diversas maneiras pelas quais é apagado. O sujeito são essas próprias maneiras pelas quais o vestígio como marca é apagado” (Ibid., p. 304). Lacan destaca os quatro apagões do sujeito com referência aos objetos a (seio, excremento, olhar e voz) que têm seus vestígios apagados pelo sujeito. Sendo o sujeito aquele que substitui seu vestígio pela assinatura – cuja estrutura elementar seria uma cruz ou um X, isto é, uma marca primária barrada/apagada por outra –, de modo que “o significante nasce dos vestígios apagados” (Ibid., p. 305). Nesse momento do texto, Lacan faz sua famosa referência à obra As bodas de Fígaro, de Beaumarchais:

Nesse ponto, nós nos safamos da dificuldade. Os vestígios são aceitos pelos outros vestígios do mesmo modo que, no nível da definição do sujeito, um significante o representa para outro significante. Um bo-borrão [patê], como diz Brid’oison nas Bodas, não conta*. É por isso mesmo que a coisa lhe interessa tanto, porque, para ele, Brid’oison, que leva a sério os vestígios, podia ser que isso contasse. Ele é um não apressado [pas hâté]” (LACAN, 1968-1969/2008, p. 305).

* Referência a Beaumarchais, As bodas de Fígaro, Ato III, Cena XIV, na qual Brid’oison […] se refere ao borrão de tinta que impede a distinção entre e e ou num documento apresentado ao tribunal[1].

Referência beaumarchaisiana

O dia louco ou As bodas de Fígaro (La folle journée ou Le mariage de Figaro), peça teatral escrita por Pierre-Augustin Caron de Beaumarchais, escrita em 1777-1778, cuja estreia só se daria em 1784 após vencido o obstáculo da censura da época, “reúne […] as ideias esclarecidas do Iluminismo, os sentimentos populares de profunda insatisfação que já fervem às vésperas da Revolução Francesa, e lhes dá vida cênica. […] ‘Beaumarchais pôs os endereços nas cartas que Voltaire, Montesquieu e Diderot haviam escrito’” (GUIMARÃES, 1991, p. XI). Em uma só peça se apresenta, dentre outras, uma comédia de costumes, que retrata as últimas décadas do Antigo Regime numa Espanha imaginária; uma comédia de intriga, na qual situações cômicas, disfarces e trocas de pessoas se sucedem em ritmo vertiginoso e envolvente; uma comédia romanesca, onde a questão do amor transita não mais em torno da conquista do ser amado, mas sim contra o sequestro do ser amado pelo poder aristocrático. Uma das ideias essenciais dessa obra, novidade para aquela época e que ganhou maior nitidez estética com sua adaptação operística por Mozart, é a de que todos os seres humanos são iguais perante o amor (Ibid., p. 12; grifo nosso). Eis a ideia revolucionária contida nesse texto teatral, tal como foi atualizada pela ópera.

Cabe ressaltar que a referência feita por Lacan (1968-1969/2008, p. 305) ao personagem Brid’oison e ao borrão de tinta que impede a distinção entre et / ou (e / sem) num contrato apresentado ao tribunal encontra-se no livro de Beaumarchais (1991;  Ato III, Cena XV), mas não no libreto operístico de Da Ponte (1991). Muito embora a passagem à qual Lacan se refira culmine num dos trechos preferidos de Mozart: o reconhecimento de Fígaro por seus pais biológicos, no sexteto do terceiro ato (GUIMARÃES, 1991, p. XIV).

Portanto, será a obra citada de Beaumarchais – com recorte em seu terceiro ato – que nos servirá de guia no presente comentário, já que a referência de Lacan se mostra mais escritural que propriamente musical. Recorreremos ainda a O mercador de Veneza, de Shakespeare (2011), com foco no quarto ato referente ao julgamento do contrato da libra de carne, haja vista que tal narrativa shakespeariana parece estar contida na de Beaumarchais, por intermédio de uma estrutura mise en abyme.

O julgamento de Fígaro

O Conde Almaviva, fidalgo espanhol, revogou o “direito de pernada” (direito do senhor feudal passar a primeira noite de núpcias com suas súditas) no perímetro de suas terras, portanto, para possuir sexualmente a jovem camareira de sua esposa, Suzanne, que se encontra prometida ao encarregado do castelo, Fígaro, ele necessita sabotar o casamento deles. Após tentar afastar Fígaro da Espanha promovendo-o a diplomata em Londres e de pensar em estimular a rejeição de Fígaro por Antônio, tio-tutor de Suzanne, o Conde dá enfim sua última cartada inventando um jeito de fazer com que Fígaro se veja obrigado a se casar com a velha solteirona Marceline, governanta em sua propriedade, deixando Suzanne liberta e ao sabor dos seus caprichos.

O juiz conselheiro Brid’oison chega ao condado para conduzir uma audiência pública que possui como partes integrantes na contenda do processo Marceline e Fígaro. Marceline faz objeção ao casamento de Fígaro com Suzanne em prol de seu próprio direito contratual de se casar com ele:

Eu abaixo-assinado declaro ter recebido da senhorita etc. Marceline de Verte-Allure, no castelo de Águas-Frescas, a soma de duas mil piastras em pilhas amarradas, soma que lhe devolverei a seu pedido, neste castelo; e que me casarei com ela como forma de reconhecimento etc. Assinado Fígaro, apenas (BEAUMARCHAIS, 1991, p. 168).

Questionado se tinha alguma objeção à leitura do documento, Fígaro assim se expressa: “Claro! Senhores, houve malícia, erro ou distração na maneira como o documento foi lido; porque não está escrito soma que eu lhe devolverei E QUE me casarei com ela; mas soma que eu lhe devolverei SEM QUE me casarei com ela; coisa muito diferente”. A contenda se estabelece entre o defensor de Marceline, Bartholo, que reivindica estar grafado E, enquanto Fígaro reivindica ler-se SEM. O escrivão, Double-Main, pega o documento e não consegue se decidir entre E e EM, afirmando que “A palavra está tão mal escrita, meio borrada… Está empastelado”. Bartholo segue afirmando que “é a conjunção copulativa E que liga os membros correlatos da frase”. Já Fígaro sustentando que “é a preposição SEM, de sentido excludente, separando os ditos membros”. Eis que Bartholo tenta um golpe de mestre, admitindo que talvez não se trate de E, como ele próprio vinha alegando, tampouco de SEM, como alegava a outra parte, mas sim EM: “soma que eu lhe devolverei a seu pedido, neste castelo, EM QUE me casarei com ela”, ou seja, “neste castelo ONDE me casarei com ela” (Ibid., p. 169).

Por fim, o Conde, com base no in dubio pro reo, define que Marceline só pode requerer o casamento na ausência do reembolso, segundo as leis espanholas, porém condena o pobretão Fígaro a pagar-lhe a quantia devida no mesmo dia – sentenciando-o no fundo a se casar com ela. Ante a compulsoriedade em cumprir tal sentença, Fígaro alega ser um fidalgo roubado por ciganos quando era bebê, e portanto sem a autorização de seus nobres pais – a quem ele procura há quinze anos –, não poderia haver casamento algum. Como prova de sua nobreza, ele faz alusão a uma tatuagem em seu braço direito, marca corporal a partir da qual Marceline o reconhece como seu filho desparecido, Emanuel, cujo pai é Bartholo (Ibid., p. 171-172). Fígaro é, por fim, salvo pelo gongo por conta do direito natural ligado à interdição do incesto.

Referência shakespeareana

 O julgamento de Antônio

Antônio, mercador de Veneza, empresta seu crédito ao amigo Bassânio, um cavalheiro pobre, que pretende desposar Pórcia, uma dama nobre de Belmonte com quem já flertou numa troca de olhares. Para tanto, Antônio contrai uma dívida junto ao judeu Shylock, seu arqui-inimigo[2], que lhe exige como garantia do empréstimo (de três mil ducados durante três meses) o empenho de seu corpo:

Eu a mostrarei,

Se for comigo ao notário e lá selar

Um compromisso simples que dirá

(Por brincadeira) que se não pagar

Em certo dia e local a soma ou as somas

Mencionadas na nota, a multa imposta

Fica arbitrada numa libra justa

De sua carne alva, a ser cortada

E tirada da parte de seu corpo

Que na hora da escolha me aprouver.

(SHAKESPEARE, 2011, p. 32)

Tendo a custosa[3] fuga da filha de Shylock, Jessica, com seu amante Lorenzo, acirrado o ânimo do judeu no sentido da cobrança contratual da dívida de Antônio como forma de compensação de seu prejuízo, eis que o rico mercador de Veneza, por mau agouro, vê naufragar todas as suas cargas valiosas caindo em profunda ruína financeira; e, mesmo assim, seu credor requer vigorosamente o cumprimento literal das regras contratuais: “se ele não pagar eu lhe arranco o coração, pois sem ele em Veneza eu poderei fazer os negócios que quiser” (SHAKESPEARE, 2011, p. 68). E, mais adiante, afirma: “Quero a multa; não há como negá-la / Antes do acordo me chamava cão…/ Pois se sou seu cão, cuidado com os meus dentes.” (Ibid., p. 80). Antônio livrara muitos devedores da pena de Shylock, motivo suficiente para o desejo de vingança deste para com aquele. Por sua vez, Antônio encontra-se totalmente entregue, à mercê do judeu, afirmando que suas perdas foram tão duras “Que amanhã mal terei a minha libra / De carne para dar ao meu credor” (Ibid., p. 81).

A Cena I do Ato IV se passa inteira num tribunal veneziano. Nele, o Duque julgará a pertinência do contrato ante um suplicante judeu intransigente, tomado pelo ódio a Antônio em insistente recusa a perdoá-lo, que quer a multa indicada no documento (sua libra de carne) a qualquer custo: “Por que prefiro a carne a receber / Três mil ducados – Isso eu não respondo! / Digamos que é capricho – serve assim?” (SHAKESPEARE, 2011, p. 90). Eis então que Pórcia, a jovem pivô da dívida contraída por Antônio em favor de seu pretendente, se disfarça fazendo-se passar por um sábio advogado de Roma, de nome Baltazar. É a partir dessa mascarada, como “jovem doutor romano”, que sua interpelação mudará os rumos do julgamento. Tendo confirmado não haver alternativa jurídica senão a da cobrança da multa pelo judeu, Pórcia introduz alguns poréns à execução da sentença da extração da libra de carne de Antônio, que a rigor inviabilizam sua própria execução:

A multa não lhe dá direito a sangue;

“Uma libra de carne” é a expressão:

Cobre a multa, arrebanhe a sua carne,

Mas se, ao cortar, pingar uma só gota

Desse sangue cristão, seu patrimônio

Pelas leis de Veneza é confiscado,

Revertendo ao Estado.

[…]

Prepare-se, portanto, para cortar;

Mas não derrame sangue; e corte apenas

Uma libra de carne, pois se cortar

Ou mais ou menos que uma libra justa –

Nem que seja para alterar o peso

Pela mínima parte de um vigésimo

De um quase nada – se a balança mexe

O espaço de um só fio de cabelo –

O senhor perde a vida e as propriedades.

(SHAKESPEARE, 2011, p. 100-101)

O sangue de Antônio não pode sair de seu habitat natural, isto é, de dentro de seus vasos sanguíneos. Ante tal impasse, Shylock declina da aplicação da multa, único modo de obter justiça dada a preclusão do reembolso. Por ter tramado contra a vida de um cidadão veneziano, Shylock teve ainda seus bens confiscados e destinados a Antônio e ao Estado. O Duque por piedade cristã perdoa seu confisco pelo Estado, convertido em multa, conferindo-lhe assim condições financeiras para seguir com sua vida, desde que Shylock se tornasse cristão e destinasse seus bens restantes como herança à sua filha Jessica – e seu companheiro Lorenzo.

Considerações finais

O elemento que une ambas as obras comentadas é o sangue, seja a “voz do sangue” [4] que livra Fígaro da obrigatoriedade de se casar com sua mãe biológica, seja o sangue como marca de um “olhar unívoco”, em sua “função como que única, do 1” (LACAN, 1968-1969/2008, p. 308), cujo campo de visibilidade lhe estava interdito, que livra Antônio da extração da libra de carne em seu peito. Seria o sangue portanto “o vestígio [que] se basta por si só” (Ibid., p. 303), pertencente ao que Lacan designaria como em-fôrma de A? Ao menos, parece ter sido o sangue como objeto voz que emergiu literariamente em As bodas de Fígaro livrando o personagem principal da mortificação do Outro, e lhe resgatando uma dimensão da vida como pulsação.


Referências
BEAUMARCHAIS, Pierre-Augustin. C. La folle journée ou Le mariage de Figaro. In: As bodas de Fígaro – Mozart, Da Ponte, Beaumarchais: o libreto e a peça. Trad. Antônio Monteiro Guimarães e Sergio Flaksman. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 1991.
DA PONTE, Lorenzo. Le nozze de Figaro. In: As bodas de Fígaro – Mozart, Da Ponte, Beaumarchais: o libreto e a peça. Trad. Sergio Flaksman. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 1991.
GUIMARÃES, Antônio M. Introdução. In: As bodas de Fígaro – Mozart, Da Ponte, Beaumarchais: o libreto e a peça. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 1991.
LACAN, Jacques. Saber gozo In: O seminário, livro 16: de um Outro ao outro (1968-1969). Trad. Vera Ribeiro. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 2008.
SHAKESPEARE, William. O mercador de Veneza. Trad. Barbara Heliodora. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 2011.

[1]  Há uma incorreção na nota da tradução brasileira: trata-se da Cena XV. Há ainda um lapso do próprio Lacan, pois, quando comparado ao texto original de Beaumarchais, não é o juiz conselheiro Brid’oison que constata uma palavra borrada no documento, mas sim seu escrivão Double-Main. Lacan acaba por atribuir ao chefe judiciário uma ação clara de seu subordinado; aliás, a figura de Brid’oison é mais derrisória que a de Double-Main nessa obra.
[2]  “SHYLOCK (À parte): …Eu o odeio porque é cristão, / E ainda mais porque, ingênuo e tolo / Empresta ouro grátis, rebaixando / Os juros cobrados em Veneza / Se consigo apanhá-lo num aperto / Mato a fome de queixas muito antigas. / Por odiar minha nação sagrada / Nos locais onde vão os mercadores / Agride a mim, meus lucros e poupanças / A que chama de juros ou de usura / Maldita seja a minha própria tribo / Se eu o perdoo” (SHAKESPEARE, 2011, p. 28). Ou seja, enquanto Antônio é o paladino da moral cristã, Shylock encarna a figura demoníaca do agiota.
[3] Tal custo equivaleu mais ou menos ao montante que Shylock emprestou a Antônio.
[4]  “MARCELINE (exaltada): Não, o meu coração não estava enganado quando se sentia atraído por ele. Só errava o motivo: quem falava era a voz do sangue” (BEAUMARCHAIS, 1991, p. 174; grifo nosso).
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