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O trabalho em Marx: um estudo sobre o objeto

Luiz Mena
Associado ao Instituto de Psicanálise da Bahia (IPB)

O marxismo e a psicanálise são duas matrizes diferentes de pensamento que seguem paralelas, como diz Lacan no Seminário 16. Miller também estabelece uma relação bastante próxima com o marxismo, e chega a dizer que “não teve tempo de ser marxista porque já era lacaniano” (p.15).

O Seminário 16 é uma forma de Lacan se aprofundar no estudo sobre o objeto a, de forma a conseguir entender a operação de causação do sujeito para além da cadeia significante, pois um significante só envia o sujeito a outro significante infinitamente. Por isso Lacan tenta entender a causação do sujeito a partir de sua relação com o objeto a, e não mais determinada pelo Outro.

Esse é o pano de fundo do Seminário 16, no qual Lacan indica a leitura de Marx, seção III do livro primeiro do Capital, “A produção da mais valia absoluta”, capítulo V, referente ao trabalho e sua valorização. E o que diz Lacan? Que Marx aproxima a mais valia do riso do capitalista, “a conjunção do riso com a função radicalmente eludida da mais valia”, aproximando desse modo o que ele tinha trazido antes, da relação do chiste com a estrutura. Ou seja, ele tenta aproximar duas dimensões, “o real e o dizer” (p.64).

Então, eu acho que ele manda ler Marx por 3 motivos. O primeiro trata do estatuto do objeto, o segundo tem a ver com o trabalho, e o terceiro com a responsabilidade. Me parece que Lacan se aproxima de Marx nos dois primeiros, e se afasta no terceiro ponto.

Primeiro ponto:

Lacan, às voltas com o estatuto do seu objeto a, se interessa por Marx porque uma parte de sua reflexão no Capital envolve um estudo sobre o objeto, no qual ele se coloca a seguinte pergunta: o que confere valor a um objeto?

Marx tenta estabelecer o estatuto do objeto, que ele chama de “mercadoria”, através de 2 definições: a mercadoria é um objeto externo que, por suas propriedades, satisfaz necessidades humanas de qualquer espécie; e a mercadoria é um objeto que, em lugar de ser consumido por quem o produziu, é destinado à troca.

Ou seja, segundo Marx um objeto pode ser avaliado em sua utilidade, ou valor de uso (por exemplo a água que mata a sede), ou o objeto pode ser avaliado como porta-valor, ou valor de troca, caráter extrínseco dado ao objeto, valor subjetivo acoplado ao objeto. O valor de troca é determinado pelas circunstâncias sociais que determinam o valor do objeto, e só pode ser realizado por uma negação imediata do seu valor de uso. Por exemplo, uma água vendida a 20 reais no aeroporto, a gente só consegue pagar quando “recalca” que é só água, e pensa que faz parte de uma experiência inesquecível de férias, por exemplo, e não água.

Ou seja, encontramos em Marx uma tentativa de diferenciação dos registros: ele parte de um objeto real com suas propriedades intrínsecas (pois ele é materialista), mas esse objeto real ganha uma forma (ou um valor) diferente a partir da inscrição simbólica que se soma a ele, assumindo um valor de troca até que o objeto real fica recalcado. Ou seja, não é só o uso que determina o valor do objeto, mas a capacidade de ser trocado.

Diz Marx que para compararmos objetos diferentes em termos de valor, devemos recalcar a utilidade ou a finalidade desses objetos, para chegarmos a uma medida comum que permita a comparação. Diz ele então que a quantidade de tempo gasto para produzir os objetos seria a unidade comum que permitiria a colocação de valor. Então, o valor de um objeto é determinado por esses 3 fatores: o valor de uso, o valor de troca, e a quantidade de trabalho necessário para a sua produção. Ao final do processo, a troca do tempo por dinheiro acaba escondendo a utilidade do objeto, o tempo necessário à sua produção, e a diferença qualitativa entre os trabalhadores.

O dinheiro em si mereceria uma reflexão mais aprofundada, na medida em que o dinheiro é um objeto que vem no lugar de todos os objetos, o que significa que ele tem uma propriedade lógica singular: ele ao mesmo tempo significa “a realização de qualquer desejo”, e significa também “a realização de nenhum desejo”, na medida em que estar na posse do dinheiro significa não estar na posse do objeto. Ou seja, o dinheiro carrega essa contradição: implica de um lado uma realização do gozo, e de outro uma renúncia ao gozo. Essa renúncia ao gozo será fundamental para a elaboração do conceito lacaniano do mais-de-gozar.

Segundo ponto:

Diz Marx que o trabalho é um processo no qual o homem se apropria dos recursos da natureza para modificá-los e imprimir a eles uma forma útil. Ele considera o trabalho como uma atividade exclusivamente humana, dizendo que a abelha constrói sua colmeia com excelência, mas o que distingue seu trabalho com o homem é que este figura em sua mente a construção, antes de transformá-la em realidade, em uma subordinação de sua força de vontade ao projeto mental.

Assim, o que diferencia o trabalho humano do trabalho da abelha é que o trabalho da abelha é instintivo e inconsciente, sua força de trabalho não está a serviço de um projeto mental e não é consequência de sua vontade, mas de seu instinto; o trabalho da abelha é repetitivo, ele visa sua adaptação às condições naturais, enquanto o humano tem a capacidade de fazer um trabalho criativo, que modifica a natureza ao mesmo tempo em que se modifica; o trabalho da abelha se utiliza sempre dos mesmos meios disponíveis na natureza, enquanto o homem desenvolve produtos que servem de ferramentas para desenvolver outros produtos mais complexos, transformando a exploração simples da matéria-prima em processos mais elaborados, o que define o homem como “a tool making animal”, um animal que constrói ferramentas, como explica Marx.

Qual é a crítica de Marx? Marx diz que a natureza do trabalho humano se modifica no capitalismo, e torna-se parecido ao trabalho da abelha. Para entendermos melhor isso, vou trazer como exemplo a manufatura de sapatos, e a mudança ocorrida com sua industrialização.

O sapateiro antigamente era um artesão com múltiplas habilidades: ele tinha que aprender a tratar o couro, a cortar o couro, a tingir o couro, a costurar o couro, a colar o couro, em um aprendizado progressivo. Com a revolução industrial, a produção de sapatos se modificou através da fragmentação dos processos necessários para se produzir um sapato. Desse modo, em vez de contratar um sapateiro, o dono da fábrica fragmenta a produção em uma série de pequenos trabalhos: em uma bancada só se corta o couro, em outra só tinge o couro, em outra só costura o couro, e assim por diante, até que os trabalhadores da bancada final só fazem colocar os sapatos na caixa. Desse modo, o que o capitalista faz é dissociar o conhecimento necessário para fazer sapatos dos trabalhadores que fazem sapatos, pois assim ele pode empregar um trabalhador simples em vez de um trabalhador especializado. Nesse processo, o sapateiro deixa de existir, e em seu lugar surge o “operário da fábrica de sapatos” que, ironicamente, não sabe fazer sapatos. Ou seja, o capitalismo provoca uma dissociação entre o saber e o fazer.

Essa análise de Marx permite a Lacan dizer, finalmente, que “o proletário não é simplesmente explorado, ele é aquele que foi despojado de sua função de saber.” (p. 140).

3) Terceiro ponto:

Concluindo, Marx denuncia com a mais valia que há uma perda no humano, e localiza essa perda no processo de produção capitalista, no qual haveria uma perda do trabalhador para o patrão, um Outro que se aproveita dessa perda através da mais valia. Para Marx alguém tem menos porque o Outro, o patrão, o senhor, o capitalista, goza do pedaço subtraído do trabalhador.

O que Lacan mostra é que há sim uma perda de gozo no humano, mas que não haveria um Outro mau que goza do sujeito, o “ao menos um” que goza onde ninguém mais pode gozar. Para Lacan (1968-69), a posição do sujeito “(…) não decorre apenas de uma opressão social, porque todo sujeito está implicado no saber que domina sua posição.” (p.52). Por isso Lacan não é marxista!

O que mostra Lacan é que o mais de gozar é uma função de renúncia ao gozo:

Assim como o trabalho não era novo na produção da mercadoria, a renúncia ao gozo também não é nova. O que há de novo é existir um discurso que articula essa renúncia, e que faz evidenciar nela o que chamarei de função do mais de gozar. É essa a essência do discurso analítico. (p. 17).


Referências:
ARANHA, M.L.A. Filosofando: introdução à filosofia. São Paulo: Moderna, 1986.
LACAN, J. (1968-69). O Seminário, livro 16: De um Outro ao outro. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Ed., 2008.
LACAN, J. (1969-1970). O Seminário, livro 17: O avesso da psicanálise. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Ed., 1992.
MILLER, J.-A. Um início na vida: de Sartre a Lacan. Rio de Janeiro: Subversos, 2009.
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