Salvador, cidade que fala – Cidade-sujeito: fala e fura, repetições e restos
Liliane Sales
Wilker França
Seria possível pensar uma cidade-sujeito passível de interpretação? Se, em “Proposição de 9 de outubro de 1967 sobre o psicanalista da Escola”, Lacan (2003) concebe a Escola como um sujeito do qual se espera um trabalho – atravessada por um furo e sustentada por uma lógica não totalizante –, poderíamos perguntar: o que faria de uma cidade algo mais do que território ou gestão? Que tipo de laço, de atravessamento ou de desejo poderia fazer da cidade um sujeito capaz de responder, não como uma unidade fechada, mas como algo que se sustenta de uma divisão e se abre ao real? Não se trataria de pensar a cidade como uma estrutura pronta, mas como aquilo que se constitui a partir de seus furos, de seus sintomas e da posição que os sujeitos aí tomam.
Foi a partir dessa ideia inicial que a equipe Lapsus se pôs a trabalho para, de forma poética, enunciar, a partir de um vídeo, algo dessa cidade tão complexa que é Salva-dor. Contamos com o presente que foi o poema do nosso colega psicanalista, membro da EBP Seção Bahia, Nilton Cerqueira, sobre a nossa cidade. Uma poesia que bordeia o impossível diante de cenas do cotidiano da periferia do bairro de São Caetano, o absurdo, o enigma entrelaçando corpos negros por vezes violentados e quase sempre desrespeitados. Nas palavras dele:
Todavia, ali mesmo, no Caps chamado Liberdade, minha margem desta tal liberdade era restrita e condicionada por cada resto recolhido do que vinha como um real da rua afora, furando cada uma das letras aliteradas: psiquiatra, psicanalista, poeta, político, no agora de cada caso.
De onde vêm as múltiplas faces que haverão de se mostrar como modos distintos de paixão? Nenhuma, contudo, que não brote do absurdo.
Como se chama esse absurdo que produz, nesses pedaços extremos da cidade, horrores de sofrimento e fervores de invenção?
A poesia de Nilton Cerqueira nos conduz pelas bordas da cidade, revelando a cena e o fora de cena: a voz da cidade, seus ruídos, o estalar dos tiros na necropolitana Salvador. A encenação da polícia, o olhar que tudo vigia, os corpos que se arrastam fora do cartão postal. O autor, com as palavras, tateia o horror e, com os restos, põe a ver o que está à margem – abrindo uma janela para os corpos negros e periféricos, desenhados no chão e invisíveis principalmente para quem está fora da cena que compõe seu cotidiano.
É nesse ponto que a cidade-sujeito nos interpela em sua materialidade sensível e simbólica. E é ainda nessa linha que Lacan (1988), no Seminário 7, menciona um “tal estado do Brasil” que, como num transe, afirmamos é a Bahia e os seus orixás tão presentes na cultura soteropolitana. Ao interrogar a vontade dos deuses, ele aproxima a natureza do amor das iniciações e cerimônias das divindades:
[…] o que quer dizer iniciação […] designando cerimônias muito precisas […] pode-se encontrar sob a forma de transes ou de fenômenos de possessão […] Platão nos diz assim que aqueles que tiveram a iniciação de Zeus não reagem no amor como aqueles que tiveram a iniciação de Ares. Substituam esses nomes por aqueles que, em tal estado do Brasil, podem servir para designar tal espírito da terra, da guerra, tal divindade soberana – não estamos aqui para fazer exotismo, mas é justamente disso que se trata (p. 307).
Assim, Lacan nos aponta para o que ultrapassa o arcabouço mítico ou as questões em torno da ontologia: trata-se do exotismo como aquilo que se faz estrangeiro ao ser e que, por isso mesmo, inclui a alteridade. A cidade-sujeito se forma também aí, nos modos de gozo transmitidos pelo som, pelo ritmo, pelos entrelaçamentos dos corpos.
Por fim, o vídeo se encerra ao som de Roda de 7, de Gabi Guedes, sob a belíssima interpretação de Luiza Brito. A música aponta para a força do batuque e da dança – uma forma de saber-fazer com o corpo que vibra, resiste e se inscreve no tempo da cidade. Em Salvador, a relação entre o toque do atabaque, o ritmo e a corporeidade revela um corpo permeado por influências coletivas e forças de alteridade. A dança nesta cidade também emerge como gesto que responde a uma presença que inclui o S(Ⱥ): o orixá, o insondável.
Salvador ou Salvamor? Porque é na dobra entre o amor e a dor que essa cidade se sustenta – e se reinventa. Mas Salvador, ou Salvamor, não se fecha numa imagem. Não há cartão-postal possível que a diga. É uma cidade que faz furo, que escapa à captura, que insiste em se dizer no ritmo dos corpos, em cada batida de tambor, no grito calado dos becos, na pulsação dos gestos que restam quando o sentido falha. Talvez seja isso que a torna causa de desejo para tantos.
Convidamos a assistir o vídeo e finalizamos este texto com as palavras do poeta:
Deixemos, então, o saber psicanalítico, esse ser fecundo em sua fugacidade, vivaz em seu alcance, se ocupar, por pouco que seja, dessa margem de liberdade que temos na lida com a loucura de cada um, quando a marca mais solitária de nós faz esse nó social, que é tanto nosso como esse absurdo insondável, umbigo que nos abriga na vida.