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Do distúrbio ao parasitismo da linguagem

Margaret Pires do Couto
Aderente da Seção Minas Gerais da EBP.
Participante dos Núcleos de Pesquisa em Psicanálise com
Crianças Pererê/MG e Carrossel/BA

La lengua, cualquiera sea, es una obscenidade.
(Lacan, Seminário 24, lição de 19 de abril de 1977)

Na clínica recebemos cotidianamente crianças com alguma perturbação na linguagem e na fala: atrasos, gagueiras, falas desconexas, ecolalias etc.  A ausência de linguagem ou dificuldade com a mesma abrange um vasto campo clínico, sendo o autismo o mais evidente.

Entretanto, o que todos esses quadros nos ensinam é que não há nada de natural na linguagem ou em falar e estabelecer com o Outro um diálogo. A linguagem é o “habitat” do ser falante, porém esse “habitat” é uma construção simbólica, imaginária e real produto de diversos enlaçamentos singulares. (Bayon, 2020, p.48)

Em seu texto “A linguagem como distúrbio do real” Miquel Bassols (2013), nos propõe uma passagem dos “distúrbios de linguagem” para se considerar a linguagem como um distúrbio. Os distúrbios de linguagem tiveram uma função de bússola na orientação da clínica da psicose. Lacan distinguiu os fenômenos de código dos fenômenos de mensagem e isolou o ponto comum entre eles como sendo a irrupção e a presença do significante no real.

Porém, foi a experiência de escrita de James Joyce que mostrou a Lacan que não existem distúrbios de linguagem, mas que a própria linguagem é um distúrbio e que com ela se pode fazer, no melhor dos casos, um sinthoma (Bassols, 2013). Revelou-se assim que a linguagem é uma espécie de doença, um vírus que faz intrusão no corpo.

As crianças psicóticas, bem como as autistas que se protegem do verbo, são as que nos permitem melhor apreender a linguagem como um distúrbio, uma perturbação, um parasita. É a linguagem que nos dá acesso ao mais singular de cada falasser.

Falar: um acontecimento de corpo 

Laurent em seu livro “A batalha do autismo” (2014), busca elucidar as condições de possibilidade de emergência da fala. Para ele, falar não é um ato cognitivo, mas uma extração do real, um acontecimento de corpo. Falar é extrair alguma coisa do corpo, é consentir com uma primeira separação.

De acordo com Pascale Fari (2022) o encontro do corpo com a linguagem se dá por meio de um traumatismo que deixa marcas, ou seja, nosso corpo sofreu as incidências do encontro com a língua que falou de nós, com a língua que nos falou. Esse encontro imemorial e mítico, constitui o traumatismo fundamental da subjetividade.  Esses efeitos no corpo representam as fixações de gozo, pedaços de real que escapam à articulação significante e à mortificação simbólica. O encontro com o Outro da linguagem produz um trauma no corpo e a cada vez que falamos atualizamos esse traumatismo. Trata-se assim, dos efeitos de lalíngua no corpo. Lalíngua encarna esse núcleo impossível de compartilhar que constitui nosso ponto de inserção e de exclusão com respeito à comunidade humana. É com a lalíngua e contra ela, ou seja, na tentativa dela se separar que nos inscrevemos no mundo. Ela é, desse modo, nosso transtorno maior da linguagem.

Falar é, portanto, tentar acomodar um espaço para seu dizer na reiteração sem fim dessas marcas produzidas pela língua. Nesse sentido, cada tomada de palavra é um acontecimento de corpo que revela nossa relação íntima com a língua, como nos alojamos e quais artifícios utilizamos para nela habitarmos. Falar envolve o corpo e os afetos. Ao tomar a palavra o falasser indica como foi afetado por ela, o que o animou, o que o perturbou etc.

Nesse sentido, para o sujeito autista toda fala é capaz de provocar terror. Para ele, o significante tem um impacto sem mediação sobre seu corpo, seu efeito é uma repercussão maciça e imediata. As mensagens espontâneas que o sujeito autista pode pronunciar de forma abrupta, de maneira repetitiva em um contexto de grande angústia, são emissões do corpo, pedaços de gozo, uma espécie de automutilação. “O sujeito às emite como se estivesse perdendo um pedaço de si mesmo, suas fezes, um jato de saliva, um berro, sangue” (Laurent, 2014, p. 107).

O parasitismo da linguagem

Para além do sujeito autista ou psicótico, todo ser falante está afetado pelo caráter parasita de lalíngua e padece a desordem que ela introduz.

Essa dimensão parasitária da linguagem torna-se evidente em diferentes fenômenos clínicos. Na neurose encontramos, por exemplo, as ruminações obsessivas, as lembranças intrusivas e recorrentes que invadem o paciente, ideias fixas, involuntárias difíceis de serem interrompidas e que parecem ter vida própria. O sujeito psicótico, por sua vez, nos ensina com o fenômeno do automatismo mental, que todos somos vítimas da linguagem, ou seja, habitados por ela.

Desse modo, o que o ensino de Lacan veio mais tarde demonstrar é que o neurótico, tanto quanto o psicótico, é habitado pela linguagem, é falado pelo Outro. Trata-se de uma língua primeira, pedaço de língua fora de sentido que permanece como parasita no corpo, fazendo marca (Miller, 1996). Isso fala, acentuando o automaton da linguagem, que opera por si mesma, impondo-se ao ser falante.

No Seminário 24, lição de 08 de março de 1977, Lacan relata uma passagem com seu neto que ajuda a esclarecer isso.

Eu tenho um neto que se chama Luc, cujos pais estão aqui. Ele disse umas coisas completamente convenientes – disse que enfim, as palavras que ele não compreendia, sendo criança, ele se esforçava para dizê-las e ele deduziu que foi isso que lhe fez inchar a cabeça. (…) Desta maneira que ele definiu tão o inconsciente, pois é disso que se trata, a saber que as palavras lhe entram na cabeça. Ele evidentemente está equivocado ao deduzir que ao mesmo tempo é por isso que tem uma grande cabeça, o que em suma é uma teoria não muito inteligente, porém pertinente, no sentido que está motivada. Há algo que lhe dá o sentimento de que falar é parasitário (LACAN, 1977 p. 32).[1]

Ao analisar as epifanias na obra de James Joyce, Lacan afirma que elas apresentam a estrutura de um fenômeno elementar, o fenômeno da palavra imposta. E nos diz:

Como é que todos nós não sentimos que as palavras das quais dependemos são, de algum modo impostas? É justamente por isso que o que chamamos de doente vai algumas vezes mais longe do que o que designamos como um homem saudável. A questão é antes saber por que um homem dito normal não percebe que a fala é um parasita, que a fala é uma excrescência, que a fala é a forma de câncer pela qual o ser humano é afligido. Como pode haver quem chegue inclusive a senti-lo? É certo que Joyce nos dá uma pequena suspeita disso “ (LACAN, 1975-1976/2007, p.92).

A linguagem, o equívoco significante, introduz o mal-entendido e se torna desse modo um entrave à comunicação. Trata-se de um distúrbio incurável para o ser falante.

Desse modo, o que Lacan demostrou é que se trata de algo comum ao falasser: “todo mundo é louco, isto é delirante”, ou seja, diante dessa dimensão real da linguagem todos precisam produzir algum tipo de defesa.


Referências:
BASSOLS, Miquel. A linguagem como distúrbio do real. In: Almanaque on line n. 13, 2013. Disponível em : https://www.institutopsicanalise-mg.com.br/index.php/a-linguagem-como-disturbio-do-real
BAYON, Patricio Álvarez. El autismo, entre lalengua y la letra. Olivos: Grama Ediciones, 2020.
FARI, Pascale. Conferencia Internacional: Hablar es un trastorno del lenguaje. Disponível em: https://www.youtube.com/watch?v=qz4jD-2ONDw  25 de out. de 2022
LACAN, Jacques. [1975-1976] O seminário, livro 23: o sinthoma. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editor, 2007.
LACAN, Jacques. [1976-1977] O seminário, livro 24:  Lo no sabido que sabe de la una-equivocación se ampara en la morra. (Inédito)
LAURENT, Éric. A batalha do autismo. Da clínica à política. Rio de Janeiro: Zahar, 2014.
MILLER, J-A. Clínica Irônica. In: Matemas I. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editor, 1996.

[1] Tradução livre do autor

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