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O corpo em psicanálise, à luz da noção de acontecimento de corpo

Fernanda Vasconcelos
Aluna do curso de Teoria da Psicanálise de Orientação Lacaniana (TPOL – IPB)

Se a análise opera com a palavra, quais as relações possíveis entre palavra e corpo? E de que se trata a dimensão da palavra enganchada no corpo? Aos que atravessam uma análise, é possível se darem conta dos efeitos desse engendramento. Não raro as pessoas saem das sessões emocionadas, comovidas, com mal-estares, enfim, perturbadas em algum modo no corpo, o que aponta que o tratamento opera não apenas a nível do sentido, do que é falado, mas também a nível de gozo e corpo. Em relação ao gozo, a análise pode ser lida como uma experiência de corpo (SALMAN, 2013). Para Miller (2020), a conexão do sujeito com o corpo impõe sua presença na análise, na medida em que o este é lugar de gozo. E de que, então, para a psicanálise, é feito um corpo?

No Seminário 23, Lacan (1975-1976) afirma que o homem tem um corpo: “Dizer seu já é dizer que ele o possui, como se fosse, naturalmente, um móvel. Isso nada tem a ver com qualquer coisa que permita definir estritamente o sujeito.” (p. 150) Ou seja, não se é o corpo. De acordo com Salman (2013), a expressão ter um corpo remete a uma relação de certo alheamento com este, um sentimento de estranheza que se tem do corpo próprio. Na perspectiva de ter um corpo, trata-se do falasser, da falta-a-ser, uma vez que ao ser falta, justamente, o ser (MILLER, 2016).

O corpo é algo que nunca se identifica completamente com o ego (DESSAL, 2013). Em seus primórdios é pura substância gozante, é um corpo que goza de si mesmo, aquilo que Freud chamava de autoerotismo. Miller (2016) aponta que gozar de si mesmo é o estatuto de todo corpo vivo e que o que distingue o corpo do falasser é que esse gozo sofre a incidência da fala. No encontro do corpo com o significante, este último, que faz vibrar o corpo através de sua sonoridade e não do seu significado, deixa de ser significante e passa a existir como gozo, o gozo Um. Trata-se de duas materialidades que se encontram: a materialidade sonora do significante, sem sentido, e a materialidade do corpo biológico. Desse encontro se faz o corpo humano. Para Horne (2022): “Nesse acontecimento de corpo, inaugural, o corpo biológico vivo torna-se vida humana.” (p. 37)

Outro conceito em uso na psicanálise se ressalta, o de acontecimento de corpo. De acordo com Salman (2013), a definição conceitual do termo acontecimento se trata de um fato que sucede em um dado momento. O acontecimento sempre se caracteriza por uma ruptura ou transição no curso dos eventos e por seu caráter efêmero, ainda que tenha repercussões no futuro. É algo através do qual pode-se demarcar um antes e um depois e tem um caráter pouco comum, excepcional. No acontecimento de corpo, se trata sempre de acontecimentos discursivos que deixam rastros no corpo, que o perturbam e produzem nele sintoma.

Para Miller (2020) os acontecimentos de corpo possuem sentido de gozo, enquanto as formações do inconsciente possuem sentido de desejo. Aponta-se aqui para a distinção entre linguagem e lalíngua, destacando-se a importância do percurso de uma análise se haver com o nível de lalíngua e com os afetos singulares que produzem no corpo. Lalíngua serve para muitas coisas diferentes que a comunicação, tem um uso que não está a serviço da relação com o Outro, opera produzindo afetos que constituem acontecimentos próprios do corpo de cada um. Nessa direção, o gozo é fundamentalmente Uno (SALMAN, 2013).

Alvarez (2022) refere que, para que haja S1, o um entre outros, ele deve ser extraído de lalíngua. A partir do enxame de S1 de lalíngua, um deles se destaca e localiza uma diferença nesta multiplicidade de uns. É um certo Um distinto que se extrai dessa multiplicidade. Esse Um se escreve enquanto letra, algo da contingência que vem escrever no corpo uma letra. Se lalíngua é a entrada do gozo no corpo, de maneira deslocalizada, a letra, por sua vez, implica uma localização desse gozo através do sintoma. O sintoma, para Lacan (1975) é um evento corporal. Essa é a dimensão do sintoma enquanto uma escrita de gozo. Um S1 se recorta do enxame, se escrevendo como sintoma, como aquele destinado a se repetir.

O gozo em questão no sintoma é produzido pelo significante. É a presença desse gozo no sintoma que atesta que houve um acontecimento (MILLER, 2016). Assim, o Um do acontecimento de corpo, desse momento inaugural do encontro entre o corpo e o significante, adquire a função de letra, que é um modo de gozo, na medida em que se repete. A letra é um tratamento do gozo de lalíngua. Lalíngua é o início do gozo, enquanto letra é a sua marca, o recorte de um modo singular de gozo (ALVAREZ, 2022).

O trauma é o elemento contingente que marca o corpo, que escreve no corpo a letra de gozo e que fura o real, ao mesmo tempo. O acontecimento que se produz nesse traumatismo (troumatisme) é a inscrição da letra e de sua borda. Lacan (1971) diz, em Lituraterra, que a letra desenha a borda no furo do saber. Tal inscrição instaura a compulsão à repetição do sintoma, que carrega consigo o gozo deste acontecimento de corpo. A inscrição da letra, a marca que se repete, é um acontecimento de corpo. Esse corpo é feito de pedaços de real, produzidos pelo acontecimento de corpo, que é a raiz do imaginário. Na medida em que ainda não se produziu a entrada na linguagem, o corpo é puro efeito do acontecimento, sem a unificação do estádio do espelho (ALVAREZ, 2022).

Em uma neurose, os Uns que marcam o corpo de forma contingente ficam escritos como letras de modo ineliminável. Eles são a base sobre a qual se constrói a relação com a linguagem, o corpo e o gozo de um sujeito. A fantasia também se dá sobre essa construção, sendo um recobrimento desses S1. O percurso de uma análise segue o caminho da cadeia significante, para a construção da fantasia, sua travessia, e, depois, para localizar as letras que determinaram a repetição dos Uns do sujeito. Alvarez (2022) afirma: “O caminho de uma análise deve desarticular a relação entre S1-S2, interrompendo a repetição, para poder isolar o Um sozinho, como o modo de gozo invariante que está presente na iteração do sinthoma.” (p. 36).

Segundo Dessal (2013), a psicanálise não propõe que o sujeito encontre uma plena harmonia com seu corpo, pois considera que essa ideia de unidade é uma fantasia que ignora a incompatibilidade do sujeito consigo mesmo, a divisão incurável causada pelo trauma da linguagem. Os significantes primordiais que aparecem desde o início da análise vão apontando para a repetição em que esse sujeito se localiza. O sujeito busca uma análise, pois sofre de coisas que lhe foram ditas, sofre das palavras do Outro. Os encontros originais com as palavras escrevem marcas no corpo e instalam um modo de gozar que o deixam enganchado em uma repetição. A análise permite isolar esses encontros iniciais que fazem escritura, os S1s a partir dos quais a neurose se ordena e torna legível o programa de gozo. Ainda que não pareça haver muitas chances em sair desse programa de gozo, mas há como amarrar os termos de outra forma, uma nova amarração que escreva outro modo de viver (SALMAN, 2013).

Na clínica do Um a transferência é ao real e se abre quando o analista, no início da análise, se deixa atrair por um ponto de real, uma raiz de gozo que se inscreve como sinthoma no exato momento do acontecimento de corpo (HORNE, 2022). O psicanalista está envolto pelas criaturas da fala, diz Miller (2016), logo, não pode se eximir de experimentar a vertigem do ser. As produções discursivas giram em torno do que o sujeito diz ser, enquanto que o analista deve mirar em outro lugar, justo onde o sujeito não é. Ler o sintoma é privá-lo de sentido, é não se ater às significações do discurso.


Referências:
ALVAREZ, P. Três versões do Um e acontecimento de corpo. Revista Curinga 53/54, Belo Horizonte: EBP-MG, p. 30-39, 2022.
DESSAL, G. Nas psicoses os órgãos falam sozinhos. Agente revista de psicanálise, n 15, Salvador: EBP-BA, 2013.
HORNE, B. O Mistério. In: O Campo Uniano, 1ed., Goiânia: Editora Ares, 2022.
LACAN, J. (1971) Lituraterre. In: Outros Escritos, Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editor, 2003.
LACAN, J. (1975) Joyce, o sintoma. In: Outros Escritos, Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editor, 2003.
LACAN, J. (1975/1976) O Seminário, livro 23: o sinthoma. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editor, 2007.
MILLER, J. A. Todo el mundo es loco. Buenos Aires: Paidós, 2020.
MILLER, J. A. Ler um sintoma. Lacan XXI – Revista FAPOL online, n. 1, 2016.
SALMAN, S. O corpo na experiência da análise. Agente revista de psicanálise, n 15, Salvador: EBP-BA, 2013.
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